Eros
Dentre as emaranhadas raízes da vida,
do escuro útero da terra,
teimo em arrancar essa paixão sem rosto,
arranco-a do seio inumano do paraíso
– temida delícia –
para depositá-la entre os homens
em claridade e convivência,
e dar-lhe uma face e um nome.
Do fundo da pré-história do desejo,
do fundo do olhar imantado,
dos gritos roucos arranhando a noite,
quero dar a essa paixão uma pátria reconhecível,
um berço,
um lar,
e guiá-la entre os amores terrenos.
(Mantende acesa a lamparina de azeite,
colhei o grão, deixai fermentar a massa,
levai ao fogo o alimento antigo.)
Da pré-história enraizada no corpo,
da funda noite vegetal,
emerge o obscuro desejo gotejante,
monstro sedutor e voraz, sereia ou boto,
carne colada à carne, lábio colado ao lábio,
vermelho contra vermelho,
seiva, saliva, sêmen
e membranas dividindo sangues
que, pulsando, se querem.
Disso que não tem nome,
e é frêmito e tremor, suspiro na pele e lume nos olhos,
disso fujo e isso busco em ancestral terror,
desconhecido em mim, raiz em mim, lagarto e cio.
Quisera domesticá-lo,
trazê-lo para junto da lareira,
enchê-lo de compreensível carinho e doméstica alegria,
de uva e de trigo.
Aprisioná-lo entre os ponteiros dos minutos,
as badaladas pousadas no aparador
e as leis da cidade.
Para, um dia, outra vez buscar chorando,
chorando, buscar anos a fio,
o jorro da fonte e o relâmpago na treva.
Há beijos soltos no ar,
pressinto esse vento de beijos.
Sementes aladas se dispersam, rompem cápsulas,
demandando corações.
Ofereço o meu, as finas setas perfuram-me a carne,
deitam raízes.
Depois que me tiveres beijado o corpo e os membros,
depois que me tiveres acarinhado com força,
como fêmea que lambe e lava sua cria,
deixa-me estar junto a ti,
recém-saída das águas,
molhada e clara.
Recém-saída da noite e da celebração.
Cambaleante e medrosa como um potro,
hesitante nas finas patas,
sem saber ainda o que fazer de distâncias,
o que fazer de mãos tão cheias.
Logo estaremos correndo lado a lado na campina.
Por algum tempo, ao menos,
sem peso de arreio no dorso.