Proust e Fernando Pessoa na Estrada de Ferro Sorocabana
E jogaremos xadrez em grandes tabuleiros
trazidos através dos salões e escadarias do templo
por bailarinas nuas.
Acima das cabeças, como altas bandejas.
Jogaremos às cegas, tateando os elefantes de marfim,
os reis de barbas encaracoladas como assírios,
as rainhas de porte altivo,
os peões, cavalos e peixes.
Jogaremos às cegas, em altos tabuleiros,
nos pináculos das montanhas,
avistando abaixo os desfiladeiros e caminhos
por onde passaram, um dia,
os soltados de algum Dario, algum Aníbal ou Alexandre.
Ao longe, no deserto, as caravanas de camelos e beduínos
desfraldando atrás de si paisagens, como mantos
Jogaremos às cegas, em altos tabuleiros,
obedecendo a antigos oráculos,
e decidindo nosso destino.
Com a névoa cobrindo os vales e chegando aos nossos pés.
Debaixo d”água os corais começaram
sua postura: nuvens de ovos e esperma,
ovos e esperma como silenciosos fogos de artifício ou densa névoa.
E a noite chega, soberana, com seu cortejo de seguidores.
Estrelas, vaga-lumes, espumas fosforescentes e outros luzeiros.
Mariposas, com sábias antenas,
formigas e cupins se tocando na escuridão,
grilos e sapos fazendo a corte
paladares, perfumes e sons
certeiros como setas e mensagens.
Pela janela do trem desfilam Europas arrasadas,
passam campos, trilhos, estações e tabuletas,
sempre campos, sempre trilhos, estações e tabuletas.
E cidades pequenas como um presépio:
ruas e ladeiras, a igreja dando para a praça, casas e tabuletas.
E Fernando Pessoa que me perdoe,
”sempre uma coisa defronte da outra”...
Procuro um endereço ignorado,
num labirinto de ruas,
numa rua que não lembro,
num beco misterioso e secreto.
Não se trata de não achar
o número na rua encontrada.
mas de não existir a rua, nem o número, nem o bairro
nem nada.
E, de repente, como por encanto,
eis a casa
com seus magníficos portões de ferro, suas arcadas,
o dossel de trepadeiras.
Dentro, o madeiramento exalando vernizes,
o rangido num certo degrau da escada,
e a claraboia de onde jorra
a luz imemorial que ainda hoje posso ver.
Eis a casa.
Com seu cheiro único e familiar.
Eis a casa, chegamos.
Pela janela do trem, desfilam Europas arrasadas,
passam campos, trilhos, estações e tabuletas.
Sempre campos, sempre trilhos, estações e tabuletas...
E os ladrilhos do banheiro, nos pés, o frio, lajotas...
Ladrilho hidráulico é que eu queria dizer,
e agora deixo que vejam o avesso do poema,
as costuras com que junto os pedaços.
E as palavras que ocorreram, acorreram,
bandos de pássaros ao entardecer.
Morcegos cegos e frutos podres,
morcegos e dejetos coloridos de frutas.
(Vi num filme uma caverna, o teto coberto de morcegos pendurados, apertados, guinchando e chilreando como passarinhos, as caras de raposa mal acabada. Mas o chão era nojento, uma placa fofa de dejetos, morcegos abjetos, objetos...)
Fica-se velha de repente. Sei-o principalmente pela pele apagada,
pelo abismo escuro e vertical entre os dois seios,
o vinco do sutiã, partindo em dois cada peito,
tenho agora quatro peitos...
Mas, não há de ser nada, havia uma deusa na Mesopotâmia,
ou quem sabe na Índia, que tinha centenas.
Sei também pelo cabelo esfarelado
e a memória que falha em coisas que sei que sei.
Quando a mãe morre, perde-se a retaguarda,
e então a Morte espreita pelas costas.
Pensei que, com a idade, se chegasse a um remanso e desejei-o.
Pensei que houvesse uma sabedoria, um happy end de meta conquistada.
Mas e aí, depois da meta, e depois? Sapo que fica parado,
cachorro pega.
E, no lago, o rio morre. Na quietude e no tédio, termina a sua trajetória,
pronto o rio acabou, o gato comeu, quede o gato, quede o rio?
A menos que, subterrânea, forme-se outra nascente,
brote uma outra fresca fonte.
Meu analista diz que sou criativa,
que meus sonhos são ricos, cheios de simbologia própria.
E eu fico feliz como um elefantinho numa poça de lama.
Fico também distante e secreta,
remota como se fumasse com piteira e usasse luvas acima dos cotovelos.
Me vestisse de preto e pérolas, e me chamasse Katherine ou Audrey,
qualquer coisa Hepburn.
Muito ricos, cheios de simbologia própria...
E é tudo ele diz sobre uns sonhos tão compridos,
anotados com tantos detalhes, com tanto zêlo...
E lá fico eu, horas e horas,
contando sonhos criativos sem nenhum proveito.
E isso é o mesmo que cantar “a cantiga do Infinito numa capoeira”
e ouvir “a voz de Deus num poço tapado”.
E não tenho culpa se Fernando Pessoa escreveu isso primeiro,
droga, bem que eu queria ter escrito,
mas, para isso, precisava ter nascido antes e tido logo essa ideia.
Mas não foi assim. Nunca foi assim.
Fiquei velha de repente e num instante todas as coisas mofaram.
Os livros empoeirados, as lombadas se esfarelando,
e, quando dei por mim,
estavam todos como os livros do meu avô,
todos assim como ele,
a pele amarelada com pintas mais escuras.
E as almofadas e estofados perderam o brilho e as cores,
ficaram como lustres feios, cheios de borlas e tristes ornatos.
E as paredes encardiram.
E “que será, da luz difusa do abajur lilás,
se nunca mais voltar a iluminar
outra noites iguais”?.
E eu sempre meio distraída,
tomando remédio errado duas vezes.
E a mãe morreu, a mãe morreu, a mãe morreu,
o pai morreu, o avô e a avó morreram, o irmão morreu, a cunhada morreu...
Esqueça isso de uma vez, porra, a mãe morreu.
E você se ferrou, ficou de costas para a janela, apanhou vento encanado e ficou fraca do peito.
E certamente não leva jeito para matriarca
ou pensaria mais em netos nascidos do que em mortas avós...
A maquilagem vai sendo lavada aos poucos e através da espuma
transparece o verdadeiro rosto.
E Marilyn Monroe, depois de morta, era só Norma Jean qualquer coisa,
casada um dia com um jogador de bola chamado Joe di Maggio,
depois com o escritor e teatrólogo... Seria ele Arthur Miller ou Henry Miller?
Que sempre confundo esses dois, e aí me lembro de James Joyce,
que não tem nada com isso, a não ser, talvez, ser casado com outra Norma, ou Nora, e ter fama de escrever muito palavrão...
E aí teve caso com os Kennedys, a Norma Jean, ficou na boca do povo,
e todos viram que morreu feia, coitadinha, nem loira nem Marilyn...
Mas não é que a safadinha me enganou?
Esfarelo entre os dedos miolo de pão e espuma
Flores de estufa são, por exemplo, as violetas africanas, no sonho
elas nasciam do meu colchão, os caules túrgidos, aveludados, poderosos e frágeis.
Mas nunca as vi tão lindas quanto num certo estúdio,
devia ser a luz, vinda do alto.
Nos quarteirões perto do mar, o ar tem um cheiro salgado e profundo.
Cheiro pungente de caverna, de algas e mariscos,
da mesma natureza do cheiro do sangue, cheiro de saliva e esperma.
E o ar está saturado de maresia.
Leite espumoso no curral:
manhã nevosa – perfume de frio, de lírios-do-vale,
de capim gordura orvalhado e mato pisado,
relincho de égua, mugido e estrume de vaca.
O leite, de tão gordo, treme no copo.
E no instante seguinte, éramos uma família rindo, com bigodes de espuma.
O morno da vaca e o branco do cheiro são o meu segredo,
pois ninguém sente tudo bem igual,
mas quase todos sabem do que falo.
Pela janela do trem desfilam trilhos, passam postes, passam trilhos, passam pontes, passam rios, passam fios subindo e descendo como caminhos de luz, estações e tabuletas. Hortas e laranjais. E as pequenas cidades do interior de São Paulo, com suas ruas e ladeiras, igrejinhas, praças e coretos.
Pela janela, cheiro de carvão queimado e chuveiro de fagulhas, cheiro de milho cozido e rapadura, baixa esse vidro, que entrou um argueiro no meu olho.
A próxima estação é a nossa, papai pegou a mala mais pesada,
e a locomotiva vai retardando o ritmo, resfolegando mais devagar,
resfolegando... Bufa uma última vez e para.
Faz-se um grande silêncio, antes de ouvirmos as vozes dos carregadores.
Mergulhamos no ar da manhã, como numa piscina,
emergimos quase em frente ao laranjal.
E por um caminho que passa
por um labirinto de ruas,
artérias e capilares,
pelo tatear de reis e rainhas, torres e peões,
por paladares e perfumes, setas e mensagens...
Que passa ainda pelo frio de fora e pelo calor de dentro,
por coxas e virilhas, axilas e pelos,
suor e saudade,
eis a casa,
os magníficos portões,
o dossel de trepadeiras,
a luz imemorial vinda do alto,
o cheiro único e familiar.
Eis que chegamos, afinal.
Eis a casa.
Eis que afinal chegamos.