Que sombra foi essa
Que sombra foi essa
despencada sobre o beijo?
Quando a mão se estendia para a flor,
se arredondava já para o fruto?
Talvez algum astro muito alto
largasse essa luz coalhada,
deixasse esse rastro de sal.
Só nos resta refazer os passos
tentando de novo alcançar os ramos,
as mesmas luzes nos dedos,
os olhos mortos sobre a face aflorada.
***
Precipitada sobre o beijo,
a mesma sombra caiu do céu,
os mesmos venenos confundiram a tarde,
enquanto a dama-da-noite se recolhia, se interrogava,
concentrada já para a orgia e o desperdício.
Despencada sobre a testa e os dedos,
a mesma luz ordenou uma paisagem fixa,
recortou planos de papelão.
Coagularam-se gestos de cera,
o instante também coalhado,
o corpo – carne, gesso,
não mais percorrido de sangue,
não mais fluido, estremecido,
acrescido em substância,
perdido o movimento
– asa das coisas –
quedadas enormes
ao peso de seus nomes imutáveis.
E agora estamos aqui, as mãos pousadas,
espectadores do mesmo sonho repetido,
sem lágrimas já para chorar o amargo.
***
Que sombra foi essa
derramada sobre o beijo,
enquanto os corpos se eriçavam
e o sangue ia se tornando gota a gota mais escuro e amargo
e a hora se encompridava sobre a nossa face?
Entre os beijos, cresciam algas,
na pele se abriam poros
espreitando sombras,
medindo distâncias e esperas.
Cada toque gerava linhas de força,
o sentir em limalhas aglutinadas,
invisíveis escudos.
Donde vinha essa sombra remota,
essa tristeza na sede dos corpos
ardentes?
Mesmo o sangue se recolheu avaro,
cada vez mais concentrado e denso,
coalhado em gestos de luta.
De onde vinha essa atmosfera rarefeita,
esse distanciamento da palavra amor?