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Essas figuras nas cavernas de Altamira

Essas figuras nas cavernas de Altamira,
esses animais reinventados,
não são eles que, próximos embora,
nos separam do animal?
E essa adoração dos mortos e do raio,
fruto e bálsamo da angústia,
ela-mesma ainda ânsia,
e a palavra
essa libertadora,
maldição e dom
que possibilita e obriga a nomear,
quando diante da vida e dos nossos pensamentos da vida
– como de um espelho –
nos pensamos?
Quando, crianças diante das coisas,
queremos quebrá-las
para conhecer-lhes o mecanismo?
E analisá-las parte a parte?
Então dizemos: casa, colher, mesa, cadeira.
E por um momento, nomeadas,                 
as coisas se quedam,
reinventadas e quietas.
E crescemos sobre elas,
organizamos o caos.
E não é preciso mais pensar nem compreender.
O nome é tudo: poder e perfume.

Já agora, por esses códigos, por esse rito,
poderemos conjurar e exorcizar as coisas
quando quisermos
até a próxima maré.
Pois, lenta, se forma dentro de nós
a onda.
Lentas as coisas se inclinam sobre nós.
E de novo e de novo,
quando crescer a estranheza,
a ameaça de sermos vividos,
precisaremos repetir as conjurações e exorcismos
e experimentar o domínio.
E, sonâmbulos, alisar a madeira do armário,
e arrumar os objetos em outra posição
e acender o fogo e moldar o barro.
E escrever mais um poema.

Mas não te enganes, poeta,
que este outro, este novo poema que te agrada
é, repetidamente, sempre o mesmo e o mesmo poema
para te assegurar,
para, em oposição às coisas,
provar que és.
Projeção tua que te ajudará a ficar de pé.
Como essa escora por trás do porta-retratos.
Já agora, assegurados,
vencida a saudade dos laços pobres
que nos faziam tão menos que um eu
(mas que não queríamos, não queríamos jamais cortar,
e quantas saudades embalamos: do bosque, do  ventre, do                                                                           [seio,
das seduções primeiras, quantos perdidos jardins!)
já agora, sozinhos sobre as duas pernas,
somos.
E indecisos, ensaiamos esses outros laços
do rito, do amor, da arte,
ensaiamos, obscuros, um novo eu
– caminho.


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