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Elegia II

Para meu irmão, Marcello
maio a dezembro de 1986


I 

Partiste
com todos os teus mistérios!
Teu senso de humor,
teus maus humores,
angústia e culpa desmesuradas.
Quem te compreendeu?
As mulheres que te amaram?
Teus filhos, teus sobrinhos,
teus amigos,
tua mãe?
Não eu; certamente, não eu.
Alguém te compreendeu por inteiro
ou apenas aos pedaços?
Faltará do quebra-cabeças alguma peça
que, mágico, escondeste na manga do casaco
e levaste contigo?

A alguns divertias, a outros irritavas,
a alguns certamente comovia
a tua infância
tantas vezes implacável,
fechada sobre si mesma, frágil e incomunicável
como os recém-nascidos.
Nunca te compreendi inteiramente.
Parecíamo-nos demais. Éramos tão diferentes!
Brincavas de faz-de-conta
e eu fingia que acreditava.
Ou estarias mesmo de bem com a vida
com tantos indícios em contrário?

Todos os juízos que fiz sobre ti
jazem à minha volta aos cacos.
Enxerguei claro demais – a luz cegou-me.
Seria melhor procurar-te nas trevas
do coração.
Mas tínhamos tanto medo do escuro!
Crescem agora comigo as perguntas sem respostas.
Inteiro e impenetrável,
cresce o poderoso enigma que eras.

Mas as cenas de uma infância partilhada
– um quarto com duas camas, tua insônia (eu dormia                                                                            [depressa),
certo quintal com um pé de maracujá
e um balanço,
a caixa de química, a caixa de mágicas, a espingarda de ar                                                                  [comprimido
(um irmão mais velho pode e sabe tantas coisas)
e a certeza de que lembravas isso tudo;
a cachorra que gostava mais de ti
porque, certamente, de nós dois, eras o mais generoso,
cuja morte choraste em desespero
(eu chorei também, escondida atrás da cortina,
espiando pela janela
o corpo rijo sendo enterrado junto à cisterna)
– as cenas dessa infância partilhada,
essas têm o peso de evidências.

Olho-me no espelho: vejo tantos dos teus traços
no meu rosto. Afinal não te compreendi.
Serei acaso menos tua irmã?


IV

Neste álbum de retratos,
venho hoje te buscar.
Venho hoje te buscar
nesse tempo em que éramos vivos
e ríamos tanto!
Vês a fotografia?
Todos, todos estão rindo:
mãe, pai, avô, primos,
nós dois.
Um a um, vou marcando certos rostos
com uma cruz:
o avô, o pai, o tio, um dos primos.
E o teu. Das crianças, só o teu.
(Ríamos tanto! Desconhecíamos
a safra de morte a ser colhida.)

Pervertes-te a ordem das coisas, não vês?
Eras mesmo irreverente, inconformado, não aceitavas regras,
Terá sido por isso?
Mas como foste morrer assim,
com os primos mais velhos vivos, nossa mãe ainda viva,
deixando-me criança, a menor de todos, na fotografia
rindo sozinha sem saber da morte?


V

Andavas entre nós
disfarçado em vivente.
Estavas morto há tanto tempo!
Trazias a morte oculta
no coração, caroço no seio da fruta.
Que presas, de que animal,
te morderam a carne?
Inocularam em ti esse mal
que te escurecia o sangue?
Trazias o sangue enegrecido
de sofrimentos antigos,
fermentado desde a infância.
Andavas entre nós distribuindo risos,
o coração já gangrenado,
víscera que obscuros vermes roeram
antes mesmo de morreres.

Foi meu pecado sabê-lo e guardar segredo
debaixo de vozes, risos, silêncios.
E não chamar o Pronto-Socorro, não tocar buzinas,
não tocar alarmes, sinos, não chamar bombeiros.
Foi meu crime esperar de mãos cruzadas no regaço
que Deus cumprisse em ti seus descaminhos.
“Por negligência, incúria, imperícia...”
“Acaso serei responsável pelo meu irmão?”
Não fui, não soube sê-lo – pecado e culpa. Assassinato                                                                          [quase?
Agora, a casa arrombada,
ando entre os escombros de uma infância partilhada,
guardiã de lembranças esfoladas,
guardiã de ruínas, sim.
Mas guardiã.


VII

Acordei hoje na casa de cima,
ao som de uma clarineta.
Era teu filho estudando
na casa de baixo.
Como foi doce acordar ao som de escalas e floreios
macia sonoridade da clarineta da infância!

Mando agora notícias:
a árvore grande do jardim
cobriu-se inteira do teu sangue derramado
e depois chorou uma por uma todas as folhas – gota após                                                                          [gota –
e permaneceu dois meses seca – luto fechado.
A nogueira e a pereira que plantaste
também se despiram.
Mas agora estão as três verdes e tenras.
E não estás aqui para ver.
Mas a jabuticabeira que era tua,
essa nunca acreditou na tua morte.
Cobriu-se de pequenos botões – como todos os anos –
e depois das primeiras chuvas,
amanheceu um dia com os galhos tufados de flocos miúdos
até as pontas, grossos, acolchoados de um tapete espesso –                                                     [como todos os anos.
E as abelhas estiveram atarefadas e felizes. (Lembro teu                                                                             [rosto).

A laranjeira já nos entonteceu de branco e perfume
atraindo beija-flores.
E não estiveste aqui para ver.
E então vieram as jabuticabas: verdes, cor de vinho,
afinal pretas, depois da última chuveirada de setembro
– nosso mês.
Entre chupar e fazer geléia,
trazidas para a cidade em sacos,
teu rosto.
A pereira está cheia de flores
e pequenas frutas novas.
Logo será tempo de fazer doce. (Teu rosto, sempre                                                                    [teu rosto.)
Até os dois pés de café este ano se cobriram de vermelho.
E os grãos secos serão torrados e moídos – metade para a                                                   [casa de cima,
metade para a casa de baixo.
Em cada flor que surge, em cada
fruta túrgida de seiva,
estão um pouco das tuas mãos que plantaram. (Teu rosto,                                              [teu boné, teu cajado.)
e fico triste porque não estás mais aqui,
alegre que frutifiquem.
“O bom bocado não é para quem o faz,
é para quem o come.”
E como plantaste tudo, a cada vez que colho
sou culpada – e estás morto.
Depois dividimos – eu e teus filhos –
como também dividias, comunhão
de dois terrenos separados, mas de árvores comunais.
E então me alegro – e estás vivo.

Ouço os pássaros – é primavera,
vejo as árvores cobertas de verde, as flores, os frutos e                                                    [tudo que amavas tanto
(e não repares se as lágrimas vão correndo agora
                                               [pela minha face).
A roseira grande, essa cobriu-se tanto de rosas-chá,
que parece falar de Ressurreição.
Depois de meses de sombra e dor,
vejo a natureza em festa e me alegro – perdoa-me estar tão                                                                         [viva!
Mas posso te assegurar – o melhor do dia de hoje
foi acordar ao som da tua música.
Naquele momento eras tu, eras tu mesmo de verdade.
Eu não via nenhum rosto – e então era o teu de novo – vivo,                                                                           [vivo.
E não era ilusão – é certo que eras tu,
pelo sopro – ah, teu, teu – do teu filho mais velho.


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