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Eis as crianças

Eis as crianças.
Como retratos colados em grandes álbuns abertos,
como insetos capturados no âmbar,
os irmãos ficaram
suspensos na teia do instante,
surpreendidos pelo clarão das luzes,
e pelo olho certeiro das lentes.
(A hera se alastra, cobrindo paredes.)

Os irmãos ficaram morando
num tempo remoto de profundos quintais,
sob a chuva continuada dos jasmineiros,
segurando a boneca, empunhando o tambor,
contemplando horizontes fechados
com grandes olhos pensativos,
sustentando sobre os ombros
o peso do futuro.
(A hera se alastra, cobrindo muros.)

Sim, houve essas crianças que ficaram
no fundo recuado dos quintais,
em pequenos jardins murados,
cercadas de uma vegetação esmaecida e sufocante,
o vento parado, os areais cinzentos,
tendo às costas
bosques inverossímeis,
pontes e troncos de pedra,
cachoeiras congeladas,
estalactites gigantescos.
E ainda hoje, os irmãos residem nesse espaço,
pousados sobre a palma horizontal do acaso,
em altas páginas, abertas aos pares
como portões ou suspiros.
Permanecem assim, unidos,
para além dos acontecimentos,
para além da Morte,
além de qualquer palavra.

***

Eis as crianças.
Paradas naquele lugar,
onde sofreram a infância.
Como fantasmas que nunca abandonaram
o local de um crime.
É um quintal,
há arvores gigantescas e uma vegetação lívida e malsã.

Sim, as crianças estão lá,
fantasmas acorrentados àquele lugar.
O tempo passou, o pai morreu,
o irmão morreu, a mãe morreu,
secaram as cacimbas, a grama secou,
formigas assaltaram ninhos,
a erva de passarinho atacou as frondes,
e a inocência foi corrompida.

Restou quase nada. Quase nada de tudo.
Mas ainda hoje, quando visita o lugar,
quando, senhora, visita o lugar,
a menina percebe que ficou um resíduo:
uma pontada do lado esquerdo,
um sorvo de sangue no fundo da xícara.

***

O Paraíso era antes,
muito antes.
O Paraíso era na infância,
num fundo recuado de quintal
por onde passava um riacho.
O Paraíso eram os cinco anos:
a mãe, o pai, o irmão
e aquela cumplicidade de dois diante de outros dois.
O Paraíso eram as profundas sombras das mangueiras
e as poças de luz no chão,         
gotas de resina pelos troncos,
o sol parado no meio da tarde,
e as infindáveis trilhas de formigas-ruivas.
Eram as nuvens tapando o sol,
o mundo perdendo o brilho
para novamente se abrir em luz
claro, escuro, claro, escuro, claro...
Eram os trovões agarrados ao cheiro de terra,
os vidros embaçados,
a cortina prateada das goteiras
e as lagartixas cruzando os altos caibros da varanda
junto às telhas.
Era o dedo encostado na folha da dormideira.
O Paraíso era um lugar bom dentro da menina,
onde morava com a mãe, o pai e o irmão,
assim, completo.
O Paraíso era um lugar antes.
Antes de morrer o irmão e tornar-se única
– pé de sapato, mão de luva –
de assistir ao choro incessante da mãe,
e ouvir soluços no quarto ao lado.
Antes das tardes foscas no cemitério,
o calor branco,
o mundo amortecido de repente para nunca mais.

O Paraíso foi antes, bem antes, muito antes.


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