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Elegia I

Perdoa a longa conversa.
Palavras tão poucas, antes!

Carlos Drummond de Andrade


I

Toda palavra ficou parada,
tremendo à beira do poço.
E ali mirava meu rosto perdido.
As raízes iam brotando
tramando um tempo novo e atônito.
O gesto ficou suspenso
nessa xícara de café que tremeu na mão;
e não me aproximei dos teus olhos fechados,
não toquei tuas mãos maciças
nem teu rosto modelado nessas grandes e lívidas horas de                                                                   [luas aflitas,
orvalho e espera. A noite sangrava.
A madrugada apontou inútil e lavada
sobre as lajes brancas e os botequins se abrindo.
Não depositei na tua testa aquele beijo de filha,
perdoa.
A morte te fazia grande como um templo
ou um navio.
E fazia de mim a menina
hesitante à porta de uma sala cheia de visitas,
no umbral de um quarto cheirando a lamparina e éter.
Passava por ti a um tempo opressa e enviesada,
proibida de cruzar fronteiras.
Desce do teu pedestal,
desfaz essa face construída tão depressa, numa única noite,
me fala de novo dos bichos e das estrelas.
E como tens falado comigo!
Que mal cessou o raspar da pá
e já dentro de mim ouvia o rolar surdo do terremoto.
Pressenti esses movimentos tectônicos, esses abalos                                                                              [sísmicos,
e com que facilidade me empurraste a crosta
e impuseste a forma de tuas cordilheiras, vales,
maciços vulcânicos, continentes, ilhas,
mundo-globo, mapa das terras e das águas.
Arrancado do fundo do lago, afloras assim imenso,
leviatã abissal e pré-histórico,
coberto de algas e de tantas coisas emprestadas.
E num largo espreguiçamento suspirado,
sacodes de ti todo o supérfluo
todo o momentâneo e contingente
e me preenches tanto com a tua presença!
Era preciso então ver-te assim preso e limitado
para que te desprendesses das exíguas medidas cotidianas,
dos pequenos constrangimentos de filha?
Era preciso que os Anjos dissessem “Nunca”
para responderes com força: “Sempre”?
E esse teu amor por mim, o meu por ti,
eu não sabia que, em tudo, éramos assim tão secretos,
diamante no fundo da mina
brilhando, brilhando,
agora e sempre aflorado,
última joia que me deste.


II

E hoje estou aqui a teu lado
como antes não pude estar.
Fiquei sempre um pouco atrás.
Deixei para a mãe o lugar da frente,
a cadeira mais cômoda, a dor maior.
Mas não era minha obrigação de filha
deixar-lhe também o amor maior
a melhor parte de quase tudo?
Menina, coube-me o segundo papel, ator coadjuvante,
figura secundária, meio-tom.
E calada, cuidei para não amar-te mais que o devido.
Mesmo no dia do teu enterro,
não devia eu em primeiro lugar tentar consolá-la
antes que chorar por mim?
E buscar-lhe café, dar-lhe a mão,
anular-me em tudo que não fosse servi-la?
Necessária,
ao mesmo tempo que furtiva e silenciosa,
presente, contanto que imperceptível?
Não sabia o tempo todo
que talvez fosse importante por mim mesma,
única filha que fui.
E se desperdicei tesouros,
sua perda se mescla com o ganho
de descobri-los em mim inexplorados em gesto,
intactos,
brilhando em surdina,
envelope fechado com o meu nome,
virtualidade, segredo.


III

Teu rosto cresce na noite.
Lembro.
Menina, tinha medo dos teus roncos,
tanto tinhas os braços e o peito peludos
e o olhar intenso.
E por um nada, perdias a paciência com o alfaiate,
com os motoristas de táxi,
aquela paciência que esbanjavas conosco.
Esbravejavas, bufavas,
eu tinha medo e raiva,
inveja por não gritar também.
E vergonha porque usavas barba.
Teu rosto cresce na noite.
O peito,
foi preciso raspá-lo para prender os eletrodos.
A máquina registrava tudo:
temperatura, pressão, as batidas do coração.
Não sei se registrou teu medo.
É verdade que se morre assim tão rápido,
pacientemente preso a tubos e agulhas,
cercado de todos os recursos da medicina?

E depois de tanta correria, parada cardíaca, vaivém de                                                                             [médicos,
o susto na boca do estômago e no tremor das mãos,
o tempo se encomprida de repente,
esse tempo neutro e amorfo, sem nenhuma pressa ou                                                                               [direção.
E as pessoas vão indo embora, vão indo embora,
entre murmúrios, abraços, tapinhas nos ombros.
Resta a palidez de uns poucos no pátio
esperando a roupa,
esperando o atestado,
esperando o carro.

Perverteste a ordem do tempo.
De um golpe, decepaste do nosso idioma, presente e futuro.
Confusa, lenta, tenazmente, tua ausência nos ensina a                                                              [conjugar o passado.
Nosso cérebro resiste.
Inauguraste uma nova era.
E sem percebermos, já passaram quase duas horas,
então já passamos duas horas nesse país estrangeiro e                                                                               [atônito
onde obscuramente não és?
Onde, perplexos, vamos aprendendo uma existência sem ti?
E furtivas, depositam-se já umas inarticuladas lembranças,
fio de óleo escorrendo, escorrendo...
Ficarás sempre na camada de baixo,
moeda no fundo do poço mais e mais remota.

Teu rosto cresce na noite.
Lembro: Menina, tinha medo dos teus roncos.
A guerra serenou e depuseste as armas.
Não roncas mais,
não ficas mais impaciente,
tens todo o tempo pela frente.
E se por ora, és ainda esse corpo enorme de pesado no                                                                              [caixão,
que evitamos olhar,
logo à tarde serás apenas a cruz preta,
esse aviso neutro nos jornais.


IV

E houve uma longa gestação,
essas horas de preparo,
até nos aproximarmos do evento.

Escrevi teu nome no meu livro,
na primeira página, escrevi teu nome.
Escrevi-o em muitas outras sob inumeráveis disfarces,
repetidamente escrevi teu nome.

Mas isso não te trouxe de volta.

Aguardei as palavras de aprovação.
Aguardei a palavra do crítico e do poeta,
colhi a frase e o sorriso em cada lábio,
ávida de senhas.
E quando elas vieram,
era um instante de alegria e exultação – colheita de vento –
antes de reentrar no amargo.
Pois isso não te trouxe de volta.

E no dia da minha festa,
quem saberia do secreto pacto,
quando me vesti de branco,
do branco dos batizados,
das comunhões e dos casamentos,
e assinei livro por livro com a tua caneta?
Mas mesmo isso não te trouxe de volta.

Não vieste nos traços dos teus irmãos,
nem no rosto dos estranhos.
Não vieste nos amigos que me festejaram.
E só quando todos foram embora,
e baixaram as portas de ferro da livraria,
e eu ainda permaneci uns instantes aguardando algum                                                                           [retardatário,
ah, estavas mais nessa espera baça por quem não veio.

Desce da tua ausência,
visita-me ao menos nos meus sonhos
para que,
apagado o brilho dos candelabros,
nesse momento escuro,
eu possa saber se estás contente,
e achar um caminho entre as pedras.


Veja o livro publicado







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