Vestígios - contos, quase contos e personagens

Vestígios Logo


O estado da perfeição

Este ano farei vestibular para medicina. O exame é muito difícil e não sei se vou passar. Mas se papai estivesse vivo estaria orgulhoso.

De manhã, cursinho. De tarde, aulas de física e química; nos outros dias, inglês. Descanso, leio um pouco, faço todos os exercícios. E de noite, novamente estudo. Os colegas vêm aqui em casa. Mamãe se orgulha do nosso esforço, traz bandejas e bandejas de biscoitos com café.

Temos que estudar muito. Problemas de física e química, nomes de ossos, músculos e nervos, chaves de zoologia e botânica. Ah, se houvesse algum remédio para fortalecer a memória e dar-me poderes especiais.

 

É difícil me concentrar. Não sei se estudo demais, não sei se é o café, mas sinto a cabeça oca, os sons ressoando em ondas, aros concêntricos de limalhas de ferro. E quando os outros vão embora, quero dormir e não consigo, as fórmulas de física brilham em prata no escuro. Mas às vezes, quando estou prestes a estalar, a trincar como uma vaso cristal, sinto-me alcançando um estado de perfeição, onde não preciso mais dormir, onde tudo é luz sem sombras, onde poderia estudar sem descansar jamais. Mas até atingi-lo, até ser admitido, enquanto resvalo, preciso pagar tributo. Depois, talvez nem precise estudar tanto, talvez tudo se resolva sem tanto esforço. Com a memória perfeita e poderes especiais.

Amanhã vou ao médico. Ele vai me receite um remédio que para dormir; ou deixar de dormir para sempre. No quase não posso ficar.

 

Mamãe me levou a um médico com cara de chinês, que receitou um calmante e disse, com voz fina e estridente, uma voz de figo seco:

– Não se assuste, o ano do vestibular é muito tenso, atendemos diversos casos de estafa. Dormir bem será meio caminho andado. E agora vai ver que dormirá como um anjo.

 

Sim, tudo se resolve agora. Graças à lei que rege o Universo – a Lei do Homem, da Mulher e da Água – tudo fica mais simples. Nenhum dos colegas entende, nenhum dos colegas vem mais estudar comigo, Mamãe às vezes acorda chorando, mas não sei por que, se tudo está melhor dentro da Lei do Homem, da Mulher e da Água. Logo de manhã, com a mente clara antes do desjejum, resolvo doze problemas de física, sem nenhum esforço, nenhuma daquelas fórmulas complicadas. Depois do café, pego o violão e toco Bach, Villa-Lobos, ensaio para o Concerto. Mas fiquei com raiva no dia em que Mamãe teimou, disse que não eu não toco nada. Como assim, não haver Concerto?, Eu sempre cumpro com meus compromissos, eu exijo.

Mas agora concordou que toco bem. Depois, falo inglês e francês em frente ao espelho. Não preciso mais de curso. Nem de remédios. Quando Ela não está vendo, coloco as caixas embaixo da cama, bem escondidas.

Porque não vou tomar. Não os receitados pelo médico com cara de chinês. Da última vez em que fui ao consultório, ele falou com voz grossa, da outra vez, era fina. Reparei bem, ele tem duas vozes, e isto, sim, guarda muitos perigos. Mamãe quer voltar lá. Insistiu hoje, terça-feira, hoje, quarta-feira, Ela não sabe que os chineses são perigosos.

 

Hoje quis afinar meu violão. Uma nota sempre desafina, o Si. Fui girando a cravelha, apertando, apertando, mudando de tom. A nota foi destoando, a corda ficando tensa, mais tensa, sem nunca atingir o Si desejado, o Si Maior que ecoava, perfeito, no diapasão. Quando a corda atingiu o limite, partiu-se com um estalo, um estalo em si bemol, si, si sustenido, num quase dó que ficou ressoando na caixa, amplificado e longo. [um estalo em si sustenido, um dó bemol que ficou ressoando na caixa, amplificado e longo] .

 

Na corte, o Rei declina ordens, que ecoam nos ouvidos de oco e eco, nos ouvidos de metal. O Rei grita ordens que saem de sua boca, cuspidas como pedras, como blocos duros de gelo faiscante. E devo obedecer. Ele me proibiu de ver os chineses, mas Ela insiste. Não vou voltar ao médico com duas vozes e cara de chinês, porque eu quase atingi o cume. A única coisa que ainda me faz medo são os ratos mecânicos, os ratos que dão choques elétricos, e os chineses, não vou voltar a este médico. Ele fala o tempo todo de um jeito dissimulado e falso, diz que não há chineses dentro de casa, sugere que não existe o Rei. Ele e Mamãe estão juntos contra mim. Eu sei que eles querem me enganar, tenho certeza. Não vou voltar. O Rei proibiu.

A casa está dividida em duas metades, pelo Tratado de Tordesilhas, e é perigoso pisar na linha. Quem pisa na linha cai. No Inferno. Cai no fogo. Para lá da linha, há banheiros imundos, montes de lixos e sujeiras. E ratos mecânicos, que rolam pelo chão, dão choques elétricos e mordem os pés de quem pisa na linha. Com dentes raivosos de morcego. Disso, sim, tenho medo. Sonho sempre com os ratos mecânicos e os banheiros imundos, e acordo aos gritos... Por isso quero ficar fechado no quarto, para cá da linha do Tratado, que avança cada dia mais; já está quase na minha porta. Não posso mais dormir, vão ocupar o meu quarto. Tenho treinado e hoje quase consegui passar a noite em claro.

Amanhã treino melhor. Se eu vacilar e dormir, acabo no papo dos chineses. Dos chineses e dos ratos. Tenho que acabar também com todos os lixos e as sujeiras. Esses têm que ser destruídos pelo fogo, só o fogo destrói e purifica – só o fogo. Por isso, tentei queimar os lixos outro dia. Mamãe descobriu e escondeu os fósforos. Mas ainda hei de achá-los.

No país dos homens de lata, o Rei declina ordens e eu obedeço. Vejo as palavras saindo da sua boca, sólidas, brilhantes como coisa de metal. Lá vigora a Lei Universal do Homem, da Mulher e da Água, nesse país de agulhas faiscantes, essa seria a salvação. A cabeça zune, cresce e dilata. Lateja. A cabeça, um palco oco, um poço de ressonâncias. No país dos Homens de Lata, não há mais fome, nem erros, nem choro de mãe, aquela velha que também está ficando com cara de chinesa, Nem sono e tristeza. Armaduras reluzentes, perfeição. E o Sol batendo duro de frente, brilho sem sombras, sem mais ou menos. Sei que sofro ainda, peno ainda, por não atingir o cume e a Lei. Mas até lá, até ser admitido, devo sofrer. Devo pagar tributo.

Sim, não vou voltar agora, eu que quase alcancei o auge (cume). Na Lei Universal do Homem, da Mulher e da Água, posso andar pelo parapeito da janela sem nenhum perigo. Voo como um pássaro. Por isso treino. Fico horas acocorado no chão, pousado como um deles. Reparo bem como fazem os corvos. Mas não conto nada a Mamãe por causa dos chineses. Porque falam mal de mim a cada esquina. A cada esquina, eles falam mal de mim com duas vozes. Falam em chinês. Para contar a Ela.

 

O homem do espelho, o Outro, ele está pálido, com a pele baça e fofa, os cabelos ásperos. Acima das olheiras, os olhos um pouco puxados têm um brilho mau, um brilho feio, mancha de óleo sobre a água, Ela me manda tomar banho e trocar de roupa, fazer a barba. Mas se não tomo banho nem troco de roupa todos os dias, se fico às vezes sem fazer a barba é porque esqueço, ou estou muito ocupado, estudando a Lei e o Tratado, eu que tenho horror às sujeiras, por isso lavo sempre as mãos e queimo os lixos, e aí reclamam. Tudo por causa dos remédios, esses que estão agora embaixo da cama. Esses que se tomar me lançarão em abismos de mau entendimento, como um coelho de açougue.

 E eles brigam comigo o tempo todo, o tempo todo, dissimulados, sonsos, Dizem que não há chineses, quando Ele mesmo, o médico, Ele bem sabe que é um espião chinês. Mas às vezes, em intervalos, vislumbro que só pelos ares posso atingir o Estado da Perfeição e fugir de todos os outros. O país dos Homens de Lata, das limalhas de ferro e das agulhas faiscantes, lá onde tudo é perfeito e cada gesto, acabado, o País do sol sem sombras, só a janela para fugir dos chineses e dos ratos, porque a linha do Tratado avança e pelo muro ainda resvalo. Pousar no parapeito, assim. Num terror iluminado, bater os braços como asas. Agora. Assim.

 

Rapidamente juntou gente. O guarda fez um cordão de isolamento. A ambulância levou dez minutos para chegar.

Uma senhora desmaiou e foi levada, sem sentidos, para o pronto-socorro.

 

[Mas no caminho desse país onde não se dorme, o país dos homens de lata com armaduras faiscantes, lá onde o Rei declina ordens em voz alta, que ressoam nos ouvidos de metal e eco, devo passar por provações e testes. [E para enfrentá-los, preciso já de alguns poderes]

POSTADO EM 19 DE JULHO
comente

Nome

E-mail

Mensagem