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Encadernado em couro

Pegou o livro na prateleira. Raimundo Correia. A encadernação meio puída guardava um resto dos dourados originais. Folheou-o ao acaso sem se fixar em nenhum poema. Não achava graça naquilo. Até que um verso – “Vai-se a primeira pomba despertada...” – ecoou lembranças do grupo escolar.

Ela deve gostar, pensou, e isto aqueceu-lhe o coração. Deu um suspiro fundo enquanto a imagem cruzava-lhe a memória – o rosto de traços regulares, certa finura no perfil e no pescoço longo, que lhe conferiam um ar airoso de ave e de adolescente. As pernas compridas pisavam tão de leve o chão que mais parecia deslizar sobre águas do que caminhar. Beirava já os trinta e sete anos, mas dificilmente lhe dariam mais de vinte e cinco.

Cumprimentou o livreiro e saiu do sebo com o livro no bolso externo do paletó. Assobiava baixinho enquanto continuava a pensar em Mariana. Nunca daria certo. No fundo ela era um pouco vedete, um pouco... leviana? pensou, e não era bem aquilo. Mimada talvez. Adotar-lhe os filhos, aturar-lhe a mãe, cuidar da casa como tinha feito Júlia desde o primeiro dia do casamento, até os últimos dias de sua existência... Alguma coisa lhe dizia que Mariana jamais o faria. Com seus concertos, suas amigas, suas rodas de intelectuais, seus poetas. E no entanto, esse ar meio ausente do mundo, a sensibilidade aguçada que lhe captava no olhar, que lhe transbordava das mãos, o perfil quase azul, justo isso o atraía. E aqueles dedos brancos e finos e frescos, de unhas sempre tratadas. Diferentes dos de Júlia, pensou, e lembrou as mãos morenas e sólidas da mulher; e logo as mãos pesadas, quentes e vermelhas da mãe. Que se enchiam de frieiras no inverno. Quando muita vez ele precisou lavar a louça para ela. Mãos que recortavam dos sacos de algodãozinho alvejado os calções e camisas de sua infância. Mãos que nunca estiveram ociosas; mesmo agora, que a velhice a obrigava a um relativo repouso, essas mãos achavam serviço agitando-se junto à cabecinha de serpente de uma agulha de crochê.

Ela vai gostar. Afinal, não se encontram esses autores com facilidade. O filho estava estudando os parnasianos e ele pusera-se em campo procurando Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira. Das livrarias passou aos sebos, acabou achando uma coletânea didática. Quando deu com os olhos na edição antiga – uma joia, o livreiro acabava de dizer, enquanto ele pagava. É, ela vai gostar. Mariana, Mariana... pensava nela dia e noite, como num fruto muito cobiçado, numa flor rara e proibida.

Encontraram-se de tarde, na confeitaria, para o chá. Uma das coisas que o fascinavam, essa mania de tomar chá. Como se estivesse emergindo de outro século. Ela falou-lhe um pouco sobre o trabalho. Ele nem conseguia prestar atenção. Qual seria o melhor momento de entregar o livro? Não deu logo de saída, num sem-jeito que o assaltava cada vez que estavam juntos. Em suas mãos toscas de menino pobre o livro empobrecia também. Mariana vestia blusa de seda, saia de flanela escocesa, e uma jaqueta de camurça jogada nos ombros com tal displicência que ficava mais elegante assim, ar de estar muito simplesmente vestida. E estava mesmo, nem era tão vaidosa; só que sapato e cinto, o pano da saia e da blusa, tudo era de primeira qualidade. Elite, passou-lhe pela cabeça. Enquanto lembrava o pai militando no sindicato e no partido. E então veio o chá, e ela pôs-se a elogiar os biscoitos e a geleia, jeito de menina deslumbrada diante de vitrine de doces. Tagarelava alegre, por pouco não falava de boca cheia, preferiu deixar o livro para depois. Sempre deixava os presentes para a hora da despedida. Talvez porque ficasse de mãos atadas e não soubesse o que dizer; talvez pelo desejo de encerrar o encontro com o prazer de dar, levando consigo sua expressão de alegria e surpresa. Ah, ela nem era tão mimada assim, qualquer lanche simples a encantava, apreciava qualquer lembrança... E no prazer da entrega, de observá-la receber e espreitar se gostava, recebia, ele também, um duplo, triplo presente. Trazia-os de tão longe no coração, do fundo do tempo e de antigos quintais, do fundo da chácara dos patrões da mãe, onde passou umas férias, menino. Sementes, frutinhas, uma cigarra seca, o primeiro ovo achado num galinheiro, o ninho vazio de beija-flor. Carregava-os com as duas mãos, cuidado concentrado de não quebrar ou perder, entregava-os calado, o coração batendo de riqueza, medo e júbilo. A mãe foi recebendo tudo com uma palavra de agradecimento e outra de elogio. Mas, na hora de voltar para a cidade, quis jogar fora as coisas que não prestavam. Quando ia lançando no lixo a asa de borboleta azul, ele correu a apanhá-la.

– Já vai você juntar esse monte de cacarecos! Pra que isso, menino?

– Pra eu olhar e achar bonito. Parece até que ela carrega o céu na asa dela.

– Esse menino vai virar poeta, a mãe disse de noite para o pai, entre orgulhosa e preocupada. O pai deu um muxoxo sem responder. Poeta... até que lhe serviria de alguma coisa agora, sorriu quase amargo. Na juventude, certamente não teria servido. A vida fora bem outra; precisara ganhá-la a cada dia, desde os dezesseis anos.

Depois de pagarem a conta – e ele sempre se afligia porque Mariana, muito naturalmente, fazia questão de dividir – respirou fundo e entregou o livro de chofre, quase bruto na explosão do carinho feroz. Na garganta acumulavam-se em nó todas as coisas que em criança nunca soube traduzir, e que agora não lembrava mais para tentar dizer.

A moça espantou-se. – Mas nem é meu aniversário nem nada! sorrindo ao descobrir o conteúdo. – Que lindo! Um parnasiano encadernado em couro! Numa edição tão antiga, até a ortografia... Enquanto ele triunfava: ela gostou, acertei, ela gostou!

Em casa, Mariana folheou o livro, pensativa. Deu um longo suspiro emendado num bocejo, estava com tanto sono, e colocou-o na estante. Ao lado de seus parnasianos, que não lia quase nunca. Bilac, Raimundo Correia, Alberto de Oliveira, todos encadernados em couro. Numa coleção de luxo da Editora Aguilar.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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