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Visitas (conto antigo)
Para minha mãe
Da primeira vez em que Dona Alice veio tomar chá com mamãe, fiquei de castigo. Quando almoçamos em casa dela, mudei minhas relações com Deus.
Dona Alice era cheia de corpo, rosto jovem. Andava muito perfumada e cheia de anéis apertando os dedos fofos. Chamava-nos de “gatinhas” e tinha mania de nos dar beijos babados, apertar-nos as bochechas e fazer perguntas odiosas na frente de todos: “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?” Responder seria pôr-me nua no meio da sala, ferindo um ou outro; ou, então, teria que mentir, como ensinavam que não fizesse. Além disso, a pergunta era sem sentido, em algumas horas seria de um, em outras seria do outro. Mas os adultos eram assim mesmo.
Durante o chá, eu tomava todo o cuidado para não derramar uma gota, para segurar a xícara e os talheres do modo certo, para não esquecer o obrigado e o faz-favor, não falar nas horas erradas nem de boca cheia, não pôr os cotovelos na mesa e, finalmente, comer as torradas como mamãe ensinara – nem de boca aberta (não se come nada de boca aberta, torrada é pior, além de se ver a comida, se ouve o barulho – craque, craque), nem de boca fechada (menina, você parece um cavalo comendo milho, croque, croque) – quantas coisas devia uma criança aprender!
Éramos cinco em volta da mesa, a toalha de linho bordada, as xícaras de porcelana, os bules de prata. Mamãe na cabeceira, eu de um lado e Dona Alice do outro, em frente a mim. Cirilo a meu lado, Elza em frente a ele, ao lado de Dona Alice.
– Podíamos casar nossos filhos, não acha Emília? – Dona Alice inventou de dizer. – Cirilo está na boa idade para casar com Yolanda. Você quer, Yolanda?
Eu devia saber como responder: nem de boca aberta, nem de boca fechada... Mas a resposta saiu intensa, como se cuspisse uma pedra.
– Não! – e aquela pedrada abriu uma passagem na alma para a resposta seguinte, se alguém ousasse perguntar.
Mamãe, logo mamãe, querendo consertar, caiu na armadilha.
– Mas por quê, Yolanda? Ele é um menino tão bonito, tão corado, você que é tão pálida...
– Corado? Ele é cor-de-abóbora.
– Mas que ideia, Yolanda! Ele é corado...
– Ele é da cor daquele meu boneco que você mesma diz que é cor-de-abóbora!
Mamãe fechou a cara, Dona Alice sorriu desmaiado, mudou de assunto, fomos brincar lá fora. Mas eu sabia o que me esperava e, mais tarde, fiquei meia hora na cadeira de castigo, acumulando ressentimento contra aquela família.
Porque não era só ela. Eu já ouvira falar muitas coisas sobre o marido, Dr. Samico. Quando nos queixávamos de papai, mamãe dizia:
– Queria ver se vocês fossem filhos do Dr. Samico.
Ou quando nos portávamos mal:
– Vocês precisavam era passar uns dias na casa do Dr. Samico, para ver o que é bom.
Porque havia dias em que ele já acordava de manhã vociferando:
– Quero banana-da-terra assada, quer haja quer não haja! E era aquele rebuliço entre as mulheres da casa. Houve um dia em que Belinha, uma das agregadas, foi mandada à rua às pressas para acordar o quitandeiro.
A mesa era presidida por ele. E na hora da sobremesa, ia perguntando às crianças, uma por uma:
– Quer goiabada ou marmelada? – e diante da reposta:
– Goiabada. – dizia para a mulher:
– Serve marmelada para ele.
Acreditava que isso ajudava a fortalecer o caráter; e, para evitar o que em breve começou a acontecer – as crianças darem respostas trocadas – de vez em quando mandava servir de acordo com o pedido, criando um desconforto em todos pela falta de lógica e regularidade. Assim contavam lá em casa, recomendando-nos que essas coisas só se comentam em família.
Dizia-se ainda que Dona Alice tinha vários aparelhos de louça, mas o mais bonito – de Limoges – era guardado escondido, porque quando Dr. Samico se aborrecia com a mulher ou com as cunhadas, anunciava:
– Vou quebrar! – e quebrava pilhas de pratos, entre metódico e raivoso.
A avó de Dona Alice era francesa e ajudara a fazer seu enxoval com rendas trazidas de Paris. Parece que ela gostava de esperar o Dr. Samico vestida em seus déshabillés de renda, pendurando-se no seu pescoço aos beijos. Ele bem que avisava:
– Alice, eu não gosto dessas tuas roupas de cocotte.
Até que um dia, como se repetisse a cena, um dia fez pior – soube-o porque escutei um desabafo de Dona Alice na sala de visitas, quando ela veio visitar mamãe. Eu ia entrando na sala quando ouvi voz de choro; fiquei escutando atrás da porta.
– Quando recebi o Samico com meu négligé cor-de-rosa – afinal, que mal há nisso, ele é meu marido – aquele meu négligé mais bonito, um rosa com rendas chantilly, bordado em ponto de sombra, ele me chamou pra junto dele de um jeito estranho. Então vi a tesoura na sua mão, me assustei, mas ele foi dizendo:
– Eu já disse mil vezes que não gosto de ver você metida nessa roupas de cocotte, e você hoje vai acreditar – e deu um primeiro talho na manga.
Dei um grito, puxei o braço, a renda rasgou – o Samico tem gênio, mas nunca tinha feito nada parecido –, mas ele me segurou e disse:
– Cuidado com a ponta da tesoura, Alice, eu não quero te machucar, você sabe que por nada nesse mundo eu te tocaria. – Quando fiquei quieta, ele foi retalhando meu négligé de crepe inteiro, bem devagar, até que não restou um pedaço de renda ou de pano maior que... Foi o último que vovó fez antes de morrer... – e Dona Alice explodiu em soluços.
– Sossegue Alice (e agora era a voz de mamãe), você sabe que “ruim com ele, pior sem ele”. Pelo menos ele não tem outra mulher, não te bate, é um excelente pai de família, não deixa faltar nada em casa. Depois você pede a ele outro peignoir, mais sério, mais ao gosto dele. Você também fica provocando, ele já não tinha te dito que não gostava desses négligés? (E mamãe foi até a cozinha, providenciar um chá de folhas de laranjeira para Dona Alice, enquanto eu desaparecia no quintal.)
Dali a uns meses, fomos almoçar com a família. Eu não queria ir. Não queria os beijos babados de Dona Alice, não queria seus beliscões na bochecha nem suas perguntas horrorosas, não queria brincar com um menino cor-de-abóbora que eu mal conhecia, não queria almoçar com o tirano do Dr. Samico.
– Vai, sim – mamãe disse – criança não tem querer. E trate de se portar bem e não me fazer passar vergonha, como da outra vez.
Uma onda de raiva brotou-me dos olhos em duas lágrimas, que ficaram equilibradas na beirada das pálpebras. Represado um desejo de vingança nem mesmo pensado e o medo mal pressentido de que tudo se voltasse contra mim. E me vesti – cambraia bordada, gola de organdi, sapatos de verniz e meias altas. Quando fiquei pronta – uma nuvem de rendas e babados, o elástico das meias apertando em baixo dos joelhos, a gola de organdi pinicando (sinais inequívocos de elegância), quando fiquei pronta e me olhei no espelho –, onde estaria a raiva? A imagem que o espelho me devolvia, toda branca e rosa e loura, os cachos presos em fitas, as pontas das asas quase perfurando as costas do vestido, uma imagem como aquela era incongruente com a raiva.
Fomos de bonde. A família morava num palacete, na Rua São Clemente.
Depois dos cumprimentos e dos aperitivos, de um passeio pelo jardim para ver as roseiras do Dr. Samico, entramos na sala de refeições. A mesa era um primor. Linhos, porcelanas e cristais, talheres e baixela de prata e, no centro, um arranjo de rosas-chá. Refrescos para as crianças, vinhos para os adultos.
Puseram-me ao lado do dono da casa. Como sempre, era ele quem servia. Depois da entrada e do prato de meio, veio um rosbife. E a primeira coisa que vi foi uma mosca mole boiando no molho. Meu primeiro impulso foi avisar. Mas logo a frase de mamãe – não vá nos fazer passar vergonha – me paralisou. Acho que sorri. Eu tinha um álibi. E ia ver quem comeria a mosca. Adultos ou crianças? Homens ou mulheres? A nossa família ou a família de Dona Alice? Agora eu ia ver de que lado estaria Deus.
A primeira a ser servida foi mamãe e sua colherada passou longe da mosca, graças ao Senhor.
– Agora vou servir Yolanda, afinal ela já está uma mocinha.
Pensei rápido que se a mosca viesse para mim, eu não era obrigada a comê-la, mas não se tratava disso, tratava-se da justiça de Deus. Se ela viesse é porque eu era ruim; mas talvez, nem tanto: afinal, tinha sido avisada.
Estiquei meu prato, decidida e rezando por dentro.
Dr. Samico serviu o rosbife e, na colher do molho, apanhou a mosca. Mas resolveu dar-me outra fatia, virou a colher, a mosca voltou para a travessa.
Foram servidos papai, as outras crianças, Dona Alice... a mosca na travessa. Achei que ninguém mais ia comê-la, misto de alívio e tristeza diante da neutralidade de Deus. Lá fora, uma nuvem cobriu o sol, amortecendo o dia. O céu ficou vazio.
Dr. Samico se serviu. Eu olhava já quase desinteressada. Uma fatia de rosbife com bastante molho e... a mosca! Nem pude acreditar no que via, fiquei de novo paralisada.
A partir daí, não comi direito e, quando dei com o olhar sério de mamãe, percebi que estava parada, de boca aberta. Disfarcei.
Acompanhava cada garfada: “De quem você gosta mais, do papai ou da mamãe?” (uma garfada de rosbife). “Vamos casar nossos filhos, Emília?” (um pouco de arroz com soufflé de chuchu). “Quero banana-da-terra assada, quer haja, quer não haja” (uma batata sauté). A mosca no prato, talvez ele nem coma... “Eu já disse que não gosto de ver você nessas roupas de cocotte” (uma fatia de rosbife, arroz com molho e, afinal, a mosca). “Eu já disse...” uma tesourada – a mosca na garfada sendo levada à boca, e o nojo enquanto ele falava com papai das últimas roseiras de enxerto. “Eu já disse que não gosto...” – outra tesourada, minha boca torcida de nojo, de repulsa. “Eu já disse...”, o peignoir de Dona Alice rasgado em tiras. Dona Alice chorando, minha boca torcida de nojo, torcida de vingança, minha boca vingada, quando finalmente ele mastigou a mosca, mastigou com gosto, engoliu, limpou os bigodes com o guardanapo de linho e bebeu um gole de vinho tinto como sangue.
Lá fora, a nuvem descobriu o Sol.
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Publicado em:
O outro lado da ciência
Organizador: Leopoldo de Meis
Editora Ateneu / 1999
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