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O embrulho
Caminhava para cima e para baixo, ao longo da praia, abraçada ao embrulho. Tinha prometido a Mauro não levá-lo para o apartamento, onde começariam vida nova, graças a Deus. Mas, percebia agora, não era tão fácil. Foi até o Arpoador, pensou em jogar o pacote da ponta, lá fora. Mas nem mesmo o velho mar conhecido, a subida pelos caminhos da infância e da adolescência, deram-lhe coragem. Quem sabe pedia a Maria do Carmo para guardá-lo? Ela não se negaria. Mas seria correto envolver a amiga? E ela não ia achar aquilo tudo um sentimentalismo bobo? Não tinha mesmo aconselhado: “Você precisa é tocar para frente. Viver o hoje, quando muito, o amanhã. Mas principalmente o hoje. O que passou, passou, nada de choramingar. Depois, vocês têm uma vida pela frente. Um marido tão bom!.. Anda, arruma essa cara, vamos ao cabeleireiro nos embelezar...” Tinha que resolver sozinha.
Olhou novamente o embrulho. Era difícil para os outros compreenderem. Queria livrar-se de tudo aquilo, queria viver bem com o marido, gostava dele. Mas jogar fora os objetos, assim, de repente, era como cortar um braço, uma perna. Depois, é tudo o que tenho, tudo o que restou (ora, não seja dramática!). Voltou para casa pensando em alugar um cofre num banco, o embrulho começava a ocupar dentro dela um lugar incômodo. Depois resolvo, pensou com um suspiro, a vaga impressão de que aquilo queria dizer depois não resolvo – e o embrulho inchava, deitava raízes, tentáculos. O apartamento ainda está em obras, tenho um mês para decidir.
E foi na semana seguinte, justamente indo ver as obras, que teve a ideia. Olhava o pedreiro fechando o vão sobre o armário do quarto. Ela queria prateleiras até o teto, mas a demora do marceneiro, a pressa de se mudarem, tinha desistido.
– Já tem armário demais nessa casa – Mauro disse. – É menos um lugar para você encher de guardados.
Explicou ao pedreiro, depressa, aos trambolhões, que esperasse o dia seguinte para terminar a parede. Queria pôr uma coisa ali dentro, no espaço vazio... Assim uma espécie de promessa.
– Mas não é por nada não, – apressou-se a dizer – eu preferia que o senhor não falasse nesse assunto com o Dr. Mauro. E fitou-o com um olhar inexpressivo como se ele fosse de outro material, não entendesse “essas coisas”.
– Fica sendo um segredo entre nós... – e tentou um sorriso casual. Mas havia um tal vazio em torno da sua voz que era como se ela fosse despencar de repente, como se a cada momento procurasse apoio para não desafinar. Passou-lhe pela cabeça o gesto complementar de estender-lhe uma nota, “para o senhor tomar uma cerveja”, e sentiu-se indigna – gorjeta sempre lhe parecera mesmo uma espécie sutil de suborno. Tão indigna que o final da frase resvalou e veio caindo, até parar solto e sem pontuação em algum lugar inadequado, no ar.
Foi interrompida pela voz do homem, que a encarava de frente. Sentiu-se de repente nua, o rosto escaldando. Baixou os olhos.
– Dona, meu trabalho não é de falar não. Meu trabalho é só de assentar tijolo.
Olhou por um momento as mãos do pedreiro, a esquerda empunhava a pá (será que ele é canhoto?) e, mais desafogada, tentou agradecer-lhe. Mas ele já não a olhava, concentrado na tarefa de alisar a massa. Imaginou cidades brotando daquelas mãos. Submarinas e iluminadas. Sorriu. “Quanta besteira... Bem que Mauro diz que eu devia escrever. Que imaginação, que talento aí se perdendo...”
Mas estava resolvido o problema. No dia seguinte trouxe o embrulho e, como a parede estivesse quase pronta, foi com alívio que o viu desaparecer atrás dos últimos tijolos.
O apartamento foi inaugurado com uma festa. Há muito tempo não se sentia tão contente. Há muito tempo não elogiavam tanto sua aparência. Sempre ficara bem de branco. E a decoração da casa, pessoal, cheia de pequenas surpresas, cada objeto com sua história. Um casal encantador: a carreira do marido, a casa nova, seu charme.
Fazia mais de dois meses que tinham mudado, quando uma noite foi acordada por uma presença estranha. O luar entrava pela janela aberta. “Deve ser a lua...” Foi até a janela. “Por que será que eu não consigo dormir debaixo da lua cheia? Bobagem, é melhor voltar para a cama. Vai ver é o frio, e eu aqui descalça, nesse chão gelado”. Deitou novamente, puxou as cobertas, num calafrio. Afinal o luar apenas resvalava pelo pé da cama, indo projetar-se na parede acima. Olhou para a parede num início de pânico e, então sim, correu a fechar as persianas. Mas era tarde. A lua tinha já deixado sua claridade impressa na superfície branca. Não estava enganada. Mesmo fechada a janela, a parede largava uma luminosidade fraca, ligeiramente azulada... não: esverdeada.
Passou longas horas agitada, levantou-se várias vezes para olhar o pedaço da parede acima do armário, compará-lo com outros trechos, abriu os postigos, talvez fosse mesmo impressão. De madrugada dormiu afinal, o sono sobressaltado, o rosto imperceptivelmente luminoso.
A vida corria bem. Pelo menos ela se esforçava para que corresse. Ocupava-se, frequentava cursos, a vida com Mauro cada vez melhor. De noite estava cansada. Só às vezes tinha insônia. Era então assaltada por dúvidas que se desdobravam, partidas e repartidas no gume de um raciocínio meticuloso, frio e exigente: “Será que cumpri a promessa? Dentro das paredes é dentro de casa?” E pensava ter recorrido a um subterfúgio perverso, o embrulho parecia, mais do que nunca, fazer parte do arcabouço da morada, ameaçando-lhe a integridade, envenenando-lhe as entranhas. “Mas eu não pude destruir aquelas coisas...” Sabia que, se as tivesse incorporado aos objetos comuns, elas se teriam diluído com o tempo, seriam absorvidas no fluxo do cotidiano. Pois que a vida, afinal, tem sua força, suas exigências diárias, suas urgências. Se ao menos estivessem dispersas... Não assim, cristalizadas, como um cálculo renal. Um comprimido que se engole e não se dissolve, pode ficar preso à parede do estômago e causar uma úlcera. Vira fotos numa revista. Assim inteiro, enquistado, enrodilhado sobre si mesmo, o embrulho tinha uma vida autônoma e particularmente maligna. Emitia ramificações, ameaçava invadir o apartamento. Lembrava-se da tarde, há duas semanas. Era folga da empregada e estava distraída, escolhendo arroz, quando sentiu a presença em suas costas. Tinha atingido a cozinha.
Foi tomada de pânico. Teve uma náusea, agarrou-se à parede para não cair. Correu ao escritório de Mauro, atirou-se no sofá, aos prantos. Aos poucos, a penumbra macia, os livros do marido e seus cachimbos enfileirados devolveram-lhe a calma. Quando ele chegou ainda a encontrou ali, e ao beijá-la sorrindo:
– Você está parecendo uma garotinha assim enrolada no sofá. Tudo bem?...
Pouco depois, começou a emagrecer. Não sabia por que, era difícil engolir. E de noite, era sempre aquela luz esverdeada, aquela fosforescência perversa. E em certas tardes de vento, quando a hora corria sobre o mar, mais verde e todo eriçado de sal, e a maresia chegava até a rua, lambuzando o chão e a fachada dos edifícios, julgava sentir no ar um cheiro penetrante de coisa estragada. Uma vez falou disso ao marido, mas ele não achava nada de extraordinário:
– Mas é assim mesmo. A maresia às vezes é mais forte... algas e mariscos que a ressaca trouxe... quando o sol esquenta... nem parece criada à beira-mar...
Mas ela já não ouvia. Julgava que aquele cheiro pungente, que tomava conta da casa e se entranhava nas coisas, não vinha de fora. Vinha de dentro da parede, atravessava os tijolos. E ali, no canto iluminado a fogo-fátuo, via delinear-se o corpo de uma sereia morta, o cadáver claro de uma menina. Em decomposição.
Quando, alguns meses depois, morreu, vítima de um mal progressivo que nenhum médico soube diagnosticar, deixando para trás um corpo devastado, porém íntegro (“É estranho, comentara um deles, todos os sinais são de câncer, mas é impossível localizá-lo.”), o marido, desgostoso, resolveu vender o apartamento.
E como explicava o corretor ao jovem casal de candidatos à compra:
– Vocês fazem um excelente negócio. O doutor Mauro só está pedindo esse preço porque quer se desfazer logo do imóvel. Aqui ele sente demais a presença da esposa. Sabem como são essas coisas. Vocês não precisarão nem mandar pintá-lo. O apartamento foi reformado há um ano. Só no quarto, acima do armário, há um ponto onde a pintura espocou e um pedaço de reboco está caindo. Há mesmo algumas rachaduras. Mas o doutor Mauro garante que não é infiltração, não há nenhum cano passando por ali. Deve ter sido serviço mal feito pelo pedreiro, durante a reforma. Esse pessoal é um caso sério. O doutor queria mandar refazer o pedaço da parede; mas quando isso começou, há alguns meses, ele estava muito preocupado com a doença da esposa. Ela começava a piorar, teve que ser internada e ele não pôde mais cuidar dessas coisas.
O casal sorriu em uníssono, compreensivo.
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