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Virtude (conto antigo)

Era uma dona casta. E castas eram suas amizades – de homem e de mulher – e moderados seus hábitos. Acordava com o cantar dos passarinhos, ia à missa em jejum, vestido simples, gola fechada. Comungava pura de pecados e voltava para casa distribuindo esmolas pelo caminho. Pela manhã assistia ao banho e à lição dos filhos, olhava a despensa, discutia com o açougueiro e o verdureiro. Baixava bainhas, pregava botões, bem orientava e bem repreendia as empregadas. Antes da sesta, lia um capítulo de romance e, à tarde, reunia-se com as amigas para bordar e tricotar para a campanha “Aqueça o coração aquecendo um pobre”. Nem se sabe como na sua vida foi surgir Otávio de Menezes.

Era amigo do marido. Nas férias, quando a mulher ia para a estação de águas, Otávio jantava com os Pontes quase todas as noites. E começou a deitar uns olhos longos e açucarados sobre Henriqueta. Azeite doce e mel. Garapa pingada de sol.

Ela percebeu num ápice, intuição cega de mulher ao sentir-se admirada. Entre a irritação com a insolência (Será que não se enxerga? Quem pensa que sou? Por quem me toma?), entre os olhares demorados ao espelho para ver se estava bem, o rubor nas faces quando ele chegava – uma confusão de olhos baixos e mãos aflitas – e o calor dormente pelo corpo todo, maior em certas partes, seja dito a bem da verdade, quando ele a observava, insistente, tudo isso foi coisa de um mês. E agora estamos diante de um problema: Henriqueta quer continuar a ser mulher virtuosa, a recatada esposa do Pontes... e ama em segredo Otávio.

 

Durou todo o verão. Parecia até tentação do Altíssimo – Deus que me perdoe – para testar a virtude de Henriqueta. Mas a mulher de Otávio andava adoentada, resolveu demorar-se mais nas águas naquele ano. Viajara ainda em dezembro, só voltaria em março. E enquanto o Pontes discorria sobre os artigos da Gazeta Mercantil, Otávio, por baixo da mesa, encostava o pé no esquivo pé de Henriqueta. E no serão, durante os cochilos do marido, ou quando ele saía da sala para o banheiro, ou em busca do Sal de Fructas contra a dispepsia, começaram os convites rasgados para encontrarem-se a sós.

– Eu não paro de pensar em você, é uma loucura, fico desejando teu corpo, teus lábios, teus seios... e vinham lá outros pormenores que melhor será calar – que, afinal, esta é a história de uma dona casta.

Henriqueta resistiu, invicta:

– Não, Otávio, é melhor esquecer-me. Não posso trair meu marido, mentir-lhe, arrastar seu nome na lama, macular minha honra de mulher casada, comprometer dois inocentes. Só esta situação aqui, dentro do meu lar, já me deixa tão constrangida... É melhor nunca nos encontrarmos. Fica quieto que o Pontes já puxou a descarga.

Virtuosa sabemos que permaneceu – que pecar em pensamento não chega a ofender a virtude de ninguém – mas não conseguiu mandar Otávio embora, afastá-lo de vez, cortar o mal pela raiz, alguma fraqueza lhe concedamos.

Janeiro prosseguia com todas as suas pompas: seus crepúsculos de ouro derramados sobre o mar, seu coro de cigarras bêbadas de luz, o véu diáfano de insetos tontos em torno dos lampiões, o cheiro adocicado de jasmim. E então, aí pelo dia vinte e cinco, deusa desperdiçada, a Lua Cheia. Do horizonte brotou fosca e ruiva, disco de cobre molhado de mar. Carregada ainda de sal. Minutos depois, despia a primeira túnica e boiava dourada sobre as águas. E logo, toda nua e brilhante, subiu mais, inaugurando por algumas noites um reinado de sortilégio, prata e cristal. E, quando o Pontes convidava Otávio e a mulher para tomarem a fresca na varanda, nem imaginava quanto de júbilo e sofrimento havia por trás da máscara serena de Henriqueta, o esforço para sofrear a tremura das mãos, ocupadas num bordado ou num tricô, logo largados num gesto brusco. Notou-lhe sim, certa magreza, a agitação noturna, as olheiras roxas. Notou-lhe mais ais e suspiros na hora do amor, mas o verão é uma festa, a mulher chegava agora aos trinta, desabrochava ela também nesse particularíssimo verão, flor exótica e profunda. E também as orquídeas têm seus meandros, seus lilases, seus roxos, seus caminhos obscuros e delicados, para além das cascatas de pólen derramado. E quando, logo após o carnaval, depois de saírem juntos para apreciar o desfile dos préstitos, Henriqueta iniciou uma fase de penitências, novenas e procissões, o Pontes nem estranhou. Decerto eram as cerimônias da quaresma, a mulher tinha lá essas manias de religião, era até bom. Contanto que não cometesse despautérios – por entre alvas e casulas, ouvem-se muitos casos por aí... Mas Henriqueta era uma flor. Orquídea, não: um lírio. E Padre Bonifácio não era desses.

Por essa altura, tinha ela dito seu último não, conforme contou em lágrimas a esse mesmo padre Bonifácio. Foi no dia do desfile dos Préstitos quando, aproveitando o espírito carnavalesco do Pontes, que a deixou no camarote com o amigo e, no rastro de alvaiade de algum pierrô, misturou-se ao povo para sambar na Avenida, Otávio passou um braço nem tão carnavalesco em torno do seu ombro e roçou-lhe a orelha com o sopro e o segredo de um convite beijado.

Dessa vez, padre Bonifácio exigiu penitências dobradas. Pelo acontecido e pelo desejado. Pelos arrepios e tremores, pelo coração disparado e os dedos frios. Mas nenhuma se comparava ao afastamento de Otávio. Talvez pela volta de Helena em março; talvez pelo martírio dos desejos frustrados (e isso preferia ela pensar). Ou quem sabe em atendimento à sua exigência corajosa (e com que dor dissera afinal):

– Se não podemos ser bons amigos, melhor será nos afastarmos. Quem você pensa que sou? Por quem me toma?

Otávio afastou-se. Henriqueta rezou, chorou em segredo, frequentou missas e novenas. Cuidou da casa e dos filhos; infernizou as empregadas. Tricotou com afinco para a campanha “Aqueça o coração aquecendo um pobre”. Emagreceu. O Pontes chegou a preocupar-se. O que terá essa mulher, que anda tão esquisita? Consolou-se afinal no honrado ombro do marido. E depois de lamentar tanto sofrimento sem nenhum proveito, acabou por felicitar-se. Afinal, mantivera-se pura. Uns poucos arranhões não feriam o cerne de sua virtude.

 

Passaram-se meses. Naquele verão, os Menezes viajaram juntos. E passou-se um outro ano inteiro. E lá um belo dia, apareceu Otávio, era janeiro. Um ramo de violetas numa das mãos e, na outra, os charutos prediletos do Pontes. Sempre o mesmo homem: galante, gentil, boa prosa. E recomeçaram os serões. E para Henriqueta, uma fase de sensações escuras e delicadas. Alegria de reencontro, lembranças pungentes da antiga recusa. Fundo remexido de lagoa: vinham à tona algas e lodo, um brilho de sol em grãos de areia e umas bolhas retardadas de fantasia arrebentando em doces suspiros de desejo sufocado. Pelo menos não sofria mais: tinha pulado a fogueira. A salvo do outro lado, não se arrependia; tampouco sentia-se ameaçada.

Otávio parecia também um nada mudado. Quando iam à varanda tomar a fresca, Henriqueta observava-o de soslaio. E novamente as fantasias esgueiravam-se entre as pausas da palestra, insinuavam-se sub-reptícias entre duas palavras... que mal tem pensar? Passada a tempestade, que ao menos aproveitasse a bonança.

Naquela noite, o Pontes retardou-se para o jantar. Um compromisso súbito e inadiável reteve-o no escritório. Telefonou à mulher: que ela fizesse as honras da casa. Henriqueta jantou com os filhos e o amigo. Tio Otávio, animado, distraiu as crianças com histórias e números de prestidigitação. E quando os meninos subiram para o quarto entre protestos e promessas, sentaram-se os dois do lado de fora como velhos e bons camaradas. Uma lagartixa cruzou o caibro maior, uns últimos cupins revoavam em torno do lampião da rua, cheirava a jasmim. Noite morna e perfumada, à luz fraca da varanda, Henriqueta baixou os olhos em silêncio, sombra de cílios bordando a face. Sobre seu silêncio, pousou carinhoso o de Otávio, mão recobrindo mão; e entre eles cresciam as palavras não ditas, inclinavam-se as flores murchas de um futuro sufocado e perdido em alguma dobra do passado.

De repente ele se inclinou, intenso:

– Como eu te quis, como sofri por tua causa! Mas você estava certa, foi uma loucura, me perdoe. Agora passou... quer dizer, às vezes ainda me sinto tão atraído, mas... bem, eu também sou amigo do Pontes... O melhor é mesmo sermos bons camaradas. E para selar essa amizade, queria te convidar... Sabe, já que nunca saímos a sós, quando Helena voltar, vamos sair todos juntos, dois ou três casais para uma noitada alegre, coisa íntima, só de amigos...

Antes que terminasse de falar, a bofetada estalou no rosto. E Henriqueta, lívida e trêmula, fuzilou:

– Isso eu nunca pensei, isso eu não admito! Eu suportei todas as tuas impertinências, tudo, tudo, porque gostei de você também. Mas isso! Quem você pensa que sou? Por quem me toma? E saiu batendo a porta da sala, subiu as escadas correndo para atirar-se na cama aos prantos. Deixando na varanda um Otávio boquiaberto. Espanto aos poucos substituído pelo enigmático sorriso de bem-aventurança que viria a se instalar em seus lábios durante todo aquele verão. E em todo o ano seguinte. Mas falemos baixo. Por enquanto, esta é a história de uma dona casta.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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