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A menina que me visita: entre o muro e a casa

Tenho medo de muitas coisas.

Escrevo do corredor que fica de lado, entre o muro e a minha casa.

Escrevo só pensando porque sou de quatro anos, não sei escrever e, mesmo, estou correndo e chorando, para ver se escapo de papai e mamãe.

Ainda há pouco vi os dois preparando a injeção. No colo da minha mãe, senti o cheiro azul do álcool queimando, vi a chama da lamparina tremendo embaixo da caixinha de ferro, aquela que fica no armário do banheiro, com a seringa desmontada e a agulha dentro, a água borbulhando num barulho meio bom e meio ruim de ouvir, ruim por causa do que vem depois, só por isso não estou ainda chorando enquanto preparam as coisas.

Depois a seringa já está montada e papai serra a boca de um vidrinho que se chama ampola com uma serrinha especial, e puxa o líquido de dentro. Depois pega a seringa com a agulha para cima empurra o negócio de vidro chamado êmbolo e dá um peteleco final na seringa para empurrar para cima a bolha de ar que sempre fica dentro.

Foi nesse instante que escapei do colo de mamãe com um berro. Ela já tinha tirando a minha roupa e eu estava só de calcinha. Escorreguei de dentro da calcinha para o chão.

Saio porta a fora pela varanda e começo a correr onde estou agora, nuínha em volta da casa, mas quando vou começar a segunda volta meu pai me espera do outro lado e daí mamãe me agarra e me empurra para o sofá de barriga para baixo, a cozinheira ajuda a segurar minhas pernas, então já vem a agulhada na minha bunda contraída, que dói mais. Meu pai fica dizendo calma, relaxa, com o bumbum duro dói mais, já acabou, mas não adianta, ainda estou soluçando e soluçando.

Nos retratos do meu álbum estou sempre rindo e alegre, perto de mamãe e papai, mas sou sempre a menor de todos porque eles são gente grande e meu irmão é de oito anos.

Eles são maiores, sabem mais coisas, sabem que é fácil agarrar uma menina de quatro anos que corre, esperando quietinhos ali, bem onde ela vai passar, os adultos que aparecem conosco nas fotos são os mesmos que nos agarram para dar injeção, é fácil enganar uma menina, mesmo quando ela corre o mais que pode, e a gente gosta deles em outras horas, vai ver é mesmo para nosso bem, como eles dizem.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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