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A avó
Lembrava-se da primeira noite. De uma onda de desejo intenso. Essa onda quase a arrastara e submergira. Mas, ao embate de outra onda mais forte – o desejo dele – o homem, o homem (como aquele namorado delicado, que a enchia de flores e bombons, que lhe furtava um beijo superficial na hora da despedida, depois de ficar longas horas conversando de negócios com seu pai, como se transformara tão rápido no macho, e como o desejo do macho conseguia ser uma onda mais possante e imperiosa, mais intensa e rápida que a sua). Como ele a apertava agora, e então sentiu de encontro a coxa o corpo dele crescer, e aquela língua estranha penetrou-lhe a boca por um momento, tirando-lhe o ar e o espaço da própria língua, como ela empurrou-o, selvagem, num desejo de espaço vital – sobrevivência. No embate entre essas duas ondas, sentira-se submergir, desaparecer, sua vontade ser nada, seu eu ser nada, palha, graveto numa avalanche, e todas as sensações escuras e delicadas que a envolviam nos últimos meses – noite, perfume, jasmim – serem levadas de roldão.
E agora subia-lhe à garganta um gosto impuro de sangue – sim, era um bolha querendo arrebentar, bolha de sangue que subia pela garganta e ameaçava romper – e o pior: a ameaça de gostar daquilo. Afastou-se um pouco na penumbra e ainda viu seu membro grande e oscilante...
A língua dele penetrou mais, e ela sentiu-se sufocar num misto de alegria, nojo e medo.
Como no primeiro dia em que comeu galinha ao molho pardo e quase gostou, e no momento em que ia gostando, lembrou-se da cena que vira sem querer. A galinha degolada, o sangue escorrendo na tigela e – pior que tudo – a galinha sem cabeça batendo as asas – a curiosidade malsã com que continuara a olhar, não podia 0despregar os olhos do talho negro. E o riso divertido da cozinheira. Primeiro um riso aberto, convidativo, depois quase mau, quando seus olhares se cruzaram, e a outra quase adivinhou desejo e medo, (ah, você também gosta?) e ela saiu correndo, fugindo, ainda estava fugindo até hoje, mas não adiantava. Agora a bolha de sangue subia à garganta, e nesse momento ele a apertou mais, boca na boca, forçou o membro entre as suas coxas. Ela queria e não queria, ele forçou mais e penetrou-a enquanto a beijava com língua e dentes e ela lutando para não pensar no buraco sangrento onde fora a cabeça da galinha. A língua penetrava mais fundo agora – falta de ar – e então ela mordeu.
Sentiu um gosto real de sangue na boca – ele deu um gemido no momento em que a penetrava e ela não sabia se era de gozo ou de dor – o gosto de sangue – do sangue dele – do sangue dela nos lençóis, o molho pardo.
Separou-se brusca – ele estava agora mole e lasso e ainda tentou puxá-la com carinho, mas ela sentia um prazer feroz em ser quase bruta. E se fechou, enroscou-se como um feto, bicho machucado, broto de planta antes de nascer – deixou-se ficar assim quieta – enroscada sobre si mesma e sobre sua dor, numa raiva surda que não se sabia raiva, uma raiva de sentir desejo e de sentir raiva – o coração batendo, batendo, os olhos abertos no escuro, a mão entre as coxas. Excitada e insatisfeita. Vitoriosa perdedora. De novo inviolável e só.
Ele tentou falar, mas alguma coisa a sufocava. Aos poucos ele se calou e uma primeira brecha abriu-se entre os dois. Nessa brecha como num corredor frio e comprido soprava uma brisa gelada, cada vez mais gelada. Ele colocou a mão sobre a cintura dela e adormeceu.
Não sabia quanto tempo ficara assim, encolhida de olhos abertos no escuro.
Levantou-se pé-ante-pé, foi ao banheiro, tomou um banho demorado, lavou as mãos, refrescou as têmporas, lavou as mãos outra vez, se distraiu lavando as mãos, a água leve e fria carregando para longe toda a sujeira.
Houve muitas outras noites, tantas! – não saberia distingui-las.
Sabia do desejo subindo, sabia que queria, sim, amava e desejava o marido, pelo menos no começo o amara, mas queria-o como quem quer ver uma galinha degolada, até que a língua dele penetrasse a sua boca e tirasse o espaço da sua antes antes que ela quisesse isso, sempre antes, ou que levantasse sua roupa e lhe tocasse a parte interna da coxa ou o bico do seio, antes que ela o quisesse também, sempre antes – e cada uma dessas coisas antecipadas excitava dentro dela o que era desejo e o que era raiva, o que era raiva de ter desejo, e raiva de ter raiva, seu corpo se enrijecia e ela lutava, lutava cada vez mais, como nem lutara no primeiro dia, lutava com ele e consigo mesma. Sim, amava e queria amar amar seu marido, mas a culpa era dele, de botá-la nua e indefesa diante daquele abismo de sentimentos contraditórios, a culpa era da cozinheira de matar a galinha e olhá-la daquele jeito, ou talvez fosse da galinha, por ter um pescoço tão feio.
Às vezes procurava se controla, ele era seu marido, devia estar no seu direito, mas quanto mais se controlava, mais fria permanecia e a onda represada se acumulava e rugia explodindo depois com mais força, e ela brusca, bruta, como não sê-lo se era sua integridade que defendia assim,– se ele ameaçava violar os limites de seu corpo e do seu eu, pôr a descoberto as delicadíssimas zonas de ternura, solidão, desejo e raiva?
Manhãs londrinas. O frio e o fog, escuro ainda quando saía para o colégio, depois de comer os ovos com presunto, as panquecas com geleia e tomar o chá. De novo o chá às cinco da tarde, e no inverno era outra vez noite, a lareira acesa, o longo entardecer e anoitecer... parecia há séculos e fazia só três anos – a saia xadrez pregueada, blusa de seda, pulôver, mantô, a boina e os sapatos de salto baixo... Ou então era primavera e as cerejeiras, as macieiras, ameixeiras e pessegueiros desfilavam pela janela do trem, quando ia visitar os tios, nos fins-de-semana.
Não como agora, não como agora. Às vezes selava o cavalo e saía pela fazenda. Gostava de cavalgar. Era uma como o animal, o trote, corpo no corpo, a sela entre as pernas, por que não seria assim com o marido, ah, não queria pensar, sabia agora porque a avó lhe dissera um dia que a alegria de ser mãe vale... vale certos sacrifícios, e a voz ficara séria, de repente, um traço na boca, os olhos profundos, e logo desviados, reticentes, mas quando se cruzaram de novo com os seus, sabia que estava falando naquilo.
Afastava-se com o cavalo até o alto da colina. De lá, descortinava-se toda a vista do vale, o rio serpeando embaixo, os morros onde a floresta tropical e luxuriante vicejava. Respirando o ar da manhã, alguma coisa se purificava dentro dela. Mas, olhando melhor o verde da floresta, verde escuro, verde amarelado e sujo, nunca aquele verde esmeraldino e límpido dos campos de trigo, ou de tulipas, não, pressentia naquele mato o enlear-se de cipós, nuvens de mosquitos subindo de águas mortas, macacos e preguiças no topo das árvores, e frutos que, de tão maduros, pareciam estalar, adocicados, quase corrompidos. Como em certos templos, na Índia, corpos enleados em corpos, seios, ancas, em tudo o sexo, o sexo com gosto de sangue e de lama, de podridão e de morte. E no entanto, era bonito. Bonito e triste, a noite baixando depressa, depressa, como era triste o entardecer dos trópicos. Em casa, quando chovia e a água desabava numa quantidade nunca vista, pela janela, o verde embaçando para os lados do morro, o vapor subindo do chão, o horizonte fechando os olhos. (Paisagem nevada, telhados de ardósia, fumaça subindo das chaminés cheirando a Pinus, a fumaça subindo da superfície dourada do chá).
E de novo a frase reticente da avó. Mas por que aceitar como sacrifício em troca da maternidade, uma coisa que sabia querer, de que sabia gostar? Mas por que então tinha raiva de querer? Por que se observava querendo e tendo raiva, o olhar frio sobre o desejo e o ódio, como se fosse duas, como se fosse três? Ah, queria desejar inteira e uma. Então fechava as pernas, cerrava os dentes. Lutava por dentro. Mas ele vencia sempre. Ele esperava, paciente e vencia. Nunca pela força bruta. Ele insistia com delicadeza, mas também com a força do seu desejo, sem entender a complexa espera e ela cedia. Para, no momento seguinte, aquela bolha com gosto de sangue subir de novo à garganta e sufocá-la. E, sufocada, ela retesar-se toda e ainda uma vez, mordê-lo. E tudo recomeçar. Por um ínfimo Até que os remorsos momento, tinha gosto em machucá-lo. Raiva e remorsos. E raiva da raiva. Até que os remorsos se transformavam numa onda de ternura. E ela chorava, pedia perdão e amava-o. Com que glória e prazer ela o amava então.
Na gravidez era ainda pior, pois enjoava o cheiro doce de seu cachimbo, mas não tinha coragem de dizê-lo, de tirar-lhe o último prazer tranquilo.
Às vezes, quando estava no quintal, olhando as crianças, ou na sala, recebendo visitas, pensava de repente em seu membro – no desejo de mordê-lo como se morde uma salsicha, a pele fina se rompendo entre os dentes. A que ponto poderia chegar? Afligia-se. E agora passara a pensar nisso também sobre os outros homens que via, os empregados da fazenda, os amigos do marido. Um pensamento que vinha com insistência torturá-la. Pior foi no dia em que Lord Stephan fora cear em sua casa, e durante todo o jantar, enquanto servia o roast beef, pensou no membro do Lord em fatias, sangrento, servido sobre a travessa. Fechava os olhos para não ver essas coisas. Tinha vontade de apertar a cabeça com força para esquecê-las. E correr para lavar as mãos.
Então sentiu subir um calor, uma tonteira. E naquele dia, foi preciso todo o seu controle para não sair correndo para se trancar no banheiro e vomitar. Sentia-se melhor quando vomitava, quase nada, um pouco de bile em náuseas secas. Então tomava um banho, se refrescava, tomava uma xícara de chá, sentia-se melhor. Ela era anormal, era suja e louca. Chegara a ter esperanças de ser normal, mas tudo voltava agora. Um banho só por dia não chegava, fazia muito calor nos trópicos. Talvez estivesse grávida de novo. Era então no início de cada gravidez, que suas indisposições aumentavam.
Lembro umas poucas cenas a respeito de vovó. Mas do pouco que lembro, lembro muito bem. Íamos visitá-la numa casa grande, de muros altos, devia ser uma espécie de asilo ou casa de repouso. Dizem que ela foi morar lá depois que vovô esgotou todas as maneiras de tratá-la. Parece que foi linda em mocinha, só ficaram essas dois retratos, que não dão uma ideia de sua beleza. Dizem que a pele e o colorido é que lhe davam um ar de anjo ou de biscuit, um ar de não ser desse mundo – e isso as fotografias da época não mostram. Ele era apaixonadíssimo por ela. Conhecera-a ainda em Londres, num concerto. No intervalo, conseguiu ser apresentado por amigos comuns. Poucos meses depois, quando soube que ela viera para o Brasil com o pai, conseguiu no banco uma transferência e veio também. A colônia se frequentava, os clubes eram fechados. Daí ao namoro e ao casamento, foi um passo.
Ela perdera a mãe aos oito ou nove anos, foi criada pela avó, acho que não teve ninguém que a instruísse sobre o casamento. Ainda assim, teve quatro filhos. Mas, depois da mania de lavar as mãos a toda hora, de tomar cada vez mais banhos, começou a sofrer de vômitos e a ficar violenta. Um dia atacou um empregado com uma faca. Felizmente o rapaz conseguiu desarmá-la.
No asilo, lembro de uma senhora de idade, os cabelos totalmente brancos, um pouco desarrumados, meio gorda, a pele muito clara, uns olhos verdes enormes, porém mortiços, um ar malsão – talvez estivesse inchada de remédios. Nenhuma semelhança com a mocinha dos retratos.
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