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Ela

A noite está terminando. Já não há mais fila. Um ou outro convidado ainda me traz um livro para autografar, encosta-se à mesa e ficamos ali, conversando um pouco. Depois se vai e a sala se queda de novo vazia.

Estou contente. Foi uma boa noite – pelas nove horas a sala esteve bem cheia, vendi quase noventa livros o que para mim – uma ilustre desconhecida apesar de tantos anos de batalha – é muito bom. Os editores ficaram satisfeitos e eu também.

Mas vou esperar um pouco mais. Um amigo me disse que chegaria tarde e seria constrangedor eu ter saído antes.

A sala estava novamente vazia quando a mulher surgiu. Magra, meia idade, grisalha, o olhar náufrago passeou em torno querendo se agarrar a alguma coisa. Tive a impressão de conhecê-la, seria conhecida de meu marido ou de algum amigo? Mas ela me lançou um último olhar cambaleante e sem rumo e não ousou transpor os umbrais da sala.

Deu meia volta e se foi, deixando as perguntas no ar: "Onde? Quando?"

Chegou outro convidado e me distraí.

Um rosto conhecido às vezes se perde da memória fora da situação em que estamos acostumados a vê-lo; num outro ambiente, em condições diferentes, temos dificuldade em recordá-lo. Descobri que o contrário também pode acontecer. O contexto pode nos trazer à memória um rosto muito pouco conhecido. Foi assim naquela noite e a lembrança teve gosto de descoberta.

Lembrava-me dela, sim. De cerca de um ano atrás, da minha outra noite de autógrafos.

Ela chegara do mesmo jeito, sem rumo. Eu me fizera as mesmas perguntas, sobre quem seria, esperara que comprasse um livro (numa noite de autógrafos, não é preciso ser muito esperto para saber que, além de ver nossos conhecidos, gostamos que comprem livros). Mas ela andou à volta ciscando, parecia já ir embora, voltou, circulou mais um pouco...

Finalmente chegou perto da minha mesa. E perguntou:

– Como a senhora fez para publicar? Porque eu também escrevo e é tão difícil...

Eu lhe disse que fora finalista em um concurso, o que era verdade, que mandara o livro para uma Editora sem maiores recomendações, o que também era verdade, e tivera o livro aceito, terceira verdade. Não disse em que condições, não acrescentei que custeara as despesas da edição. A verdade ficou pela metade, quando muito pelos três quartos. Mas é difícil admitir que fizemos o que tantos autores novos fazem, essa espécie de "trottoir" literário, de se oferecer desse modo pelas esquinas do mercado editorial.

E por que aquela mulher intrometida (enxerida, abelhuda) tinha que bisbilhotar? (– É, minha senhora, é difícil, sim, há 20 anos eu batalho, lanço mão de todas as minhas armas, da minha dose de competência, do meu talento, se é que realmente tenho algum, dos meus prêmios e do meu dinheiro, por que não do dinheiro? Só nunca fui para a cama com um editor, será que daria certo? Mas além de não conhecer nenhum, minha última editora é uma senhora, não fui educada para essas coisas.) E continuo uma ilustre desconhecida. Um fracasso.

Ontem lá estava ela de novo. Será que passa a vida como um navio-fantasma, navegando, adernado e sem rumo, pelos eventos noturnos?

 

Uma outra personagem me vem a memória, a propósito dela. Uma outra mulher vagava assim, de evento em evento, quando meu neto Rafael, nasceu. Entrou no quarto da minha nora, onde os quatro avós babavam em torno do berço. Foi entrando com ar de visita, e cada par de avós pensando que ela fosse conhecida do outro. Foi logo perguntando à outra avó:

– Quanto ele pesou?

Não era um peso-pesado. Eram dois quilos e seiscentos e setenta gramas de pura graça e formosura. Mas a outra avó arredondou, confessemos que foi a mesma verdade pelos três quartos:

– Dois quilos e setecentos gramas.

 Ao que ela acrescentou:

– A minha neta tem três quilos e oitocentos e vinte gramas. E nasceu de parto normal. Quando percebemos que ela viera só para contar vantagem, meu marido foi abrindo a porta e ela saindo, com aquele ar bem aventurado de avó de criança de três quilos e oitocentos e vinte gramas, de parto normal, deixando no ar a sensação de mal estar, enquanto se dirigia, meu marido jura que viu, ao quarto de um outro bebê menino, que, portanto não era o quarto da sua filha.

E eu fiquei lamentando não ter dito a ela que, se o nosso neto era menor, vencia então em densidade de formosura, o seu Encanto dividido por um número menor de meros quilogramas.

 

Meus livros venderam pouco. Mas até agora já são cinco. Três em boas editoras, dois em editoras pequenas, que não foram adiante. Fiquei com montes de exemplares sobrando em casa. Mas este agora não foi custeado por mim, está distribuído em todas as livrarias, soube que há pessoas comprando, lendo, gostando. Pode não ser uma super-carreira, mas talvez comece a existir.

E, em meio às flores da mesa, vi-me através dos olhos da desconhecida, no meu tubinho preto, bem maquiada, quem sabe até bonita, alguns prêmios e menções, cinco livros publicados. E percebi através daqueles olhos: Eu não sou eu, o fracasso, eu sou Ela, o sucesso. Quem sabe algum dia serei apenas eu, escritora?

POSTADO EM 19 DE JULHO
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