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Dona Branca

Depois dizem que gato não se apega ao dono. Pergunta à tua avó. A gata era da mãe dela. Enorme, roliça, toda branca. De raça pura não era, mas tinha um traçado de persa e era muito bonita, o pelo macio e lustroso. Dengosa como ela só, Dona Branca foi criada pela bisavó e desde muito pequena vivia agarrada às saias dela, se roçando pelas pernas, pedindo cafuné. Gostava de comer pedacinhos de pão molhados no leite; só comia os bem miúdos, oferecidos pela mão de Dona Emília. De noite, quando a família se reunia na sala de jantar para o serão, dava uns passeios fidalgos em cima da mesa, empurrava os braços da bisavó de sobre a almofada e se acomodava ali, princesa. Só uma vez cruzou. Com o gato malhado da vizinha, que pouco depois morreu atropelado. Nunca aceitou outro macho. Teve uma única cria muito miúda, que também não vingou.

É possível que esses descaminhos lhe tenham envenenado a alma. Um dia, tua avó era menina, deram-lhe um casal de angorás. Filhotes ainda, coisa mais bonita, umas bolinhas de pelo, focinho rosa e olhos azuis. Dona Branca chegou desconfiada, cheirou os gatinhos, arrepiou-se toda. Pensaram que fosse atacar, mas ela soltou um miado alto, ferida, e correu para o fundo do quintal.

Naquela noite, hora do serão, puseram os gatinhos em cima da mesa para brincar, gabando-lhes as graças e formosuras. Tua bisavó foi buscar Dona Branca no colo e ofereceu-lhe o lugar de costume na almofada. Ela deu uns passos arredios e saltou para o chão, com um miado raivoso. Quando insistiram, mostrou as unhas.

Durante duas semanas tentaram agradá-la. Em vão. Ficava o dia inteiro andando de um lado para o outro, tal e qual fera enjaulada. De vez em quando soltava um miado de cortar o coração. Comer um pouco ela comia, mas nunca mais aceitou as ofertas de pão molhado no leite.

Quando não estava andando naquele desassossego, ficava parada junto à parede, olhando um ponto fixo no espaço; e de vez em quando dava um bote, como se caçasse ratos no vazio. Quase não dormia, e quem se levantasse a qualquer hora da noite, veria seus olhos fosforescentes brilhando, multiplicados, em cada canto da casa.

Pensaram em dar os gatinhos, mas tua avó já estava muito apegada a eles. Depois, aquilo era um capricho, todos achavam que ela acabaria por acostumar-se; ainda mais que Dona Emília vivia atrás dela, cheia de mimos, vitaminas e fortificantes.

Não adiantou. A gata foi definhando, definhando, quando chamaram o veterinário era tarde. Magra, uma sombra do que fora, Dona Branca morreu em menos de dois meses. De paixão.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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