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Pombos
Luíza chegou perto da janela e descerrou a cortina encardida. O ninho estava lá, junto do aparelho de ar condicionado. Procurou ver melhor através do vidro sujo. Dois ovinhos. A pomba tinha voado para longe, logo estaria de volta, devia começar o choco. Dois ovos. A vida pulsando dentro das cascas finas. Se olhasse contra a luz, veria a sombra avermelhada. Ovo galado. Em criança, um dia, a mancha vermelha raiada já de pequenas veias, nojo, não comeu mais ovo um tempão, a mancha marrom na calcinha, o galo subindo nas costas da galinha. Maltratando? Ela olhando, olhando, menina, venha para dentro! Esses agora, tão miudinhos.
Renato, que trabalhava na mesa em frente, vivia reclamando:
– Isso é um absurdo, uma falta de higiene, bichos imundos! Todo mundo sabe que pombo transmite um monte de doenças. E a gente respirando esse bafo de pena e cocô. Entra tudo pelo ar condicionado.
Ficava quieta. Se ele soubesse que às vezes trazia milho, miolo de pão... Chegava mais cedo especialmente para isso. As salas vazias, o pombo arrulhava feliz, o peito inchado. Castanho claro quase rosa, laivos nacarados, o colar de penas escuras, pretas verdes, derramadas pescoço abaixo. Arrulho, gargarejo, gorgolejo, gorja, corpo quente de pássaro. Em casa, as rolinhas. Deixava alpiste na janela. Todas as noites. Às vezes acordava com um ruflar de asas e tinha a sorte de vê-las passeando no parapeito. Um dia uma entrou, ficou se debatendo de encontro à vidraça. Conseguiu agarrá-la, o bichinho ainda se agitou assustado. Depois um momento quieto, o corpo todo macio e quente. Antes de se libertar das mãos a custo abertas.
Nesse momento percebeu. Apanhou na gaveta a bolsinha de plástico e, lançando um olhar enviesado para trás da saia, dirigiu-se ao banheiro. Mais um mês, a natureza armara-se em ninho. Toda poderosa, aconchegadora, mãe, preparara-se para o advento. Suculenta parede de vasos, suculentos tecidos, aconchego, arrulho, gorgolejo, garganta. E todo aquele sangue desperdiçado.
Atravessou a praça em direção à lanchonete, caminho elevado sobre o pequeno lago. Quase seco. Olhando para baixo, viu os canos descobertos de antigos repuxos, a água estagnada abaixo do nível, cheia de copos de papel amassados boiando, as moedas brilhando no fundo. Fonte dos amores, três desejos apressados de meio dia. Bancários, secretárias, pequenos funcionários, contínuos, camelôs.
No gramado em frente, dois pombos escuros e um claro apressavam-se atrás de cubinhos de pão. Bicavam a grama sôfregos, vorazes, impulso de luta. Viu quando um deles abocanhou um pedaço maior, precisou abrir de novo o bico, o pão quase caiu, abriu, fechou, foi amassando o bocado. Viu quando a garganta se alargou e se contraiu outra vez apertada, elástica mucosa, antes que o pão desaparecesse no escuro. Agarrar a vida assim, triturá-la, ah, esse ímpeto, essa vontade, esse calor de febre nas penas. Luíza ficou ainda parada algum tempo, os ombros um pouco curvos, toda disponível antes do expediente. Pensando, sem saber porquê, que tinha visto uma coisa muito importante.
O filhote já está emplumado. É apenas um, o segundo ovo gorou. Luíza acompanha a cada dia o crescimento rápido. Antes era só olho e bico, a cabeça enorme, pelanca cor de rosa se arrastando. O bico maior que tudo, rasgado nos cantos. Aberto como fole, quase escondia a cabeça que a mãe enfiava garganta abaixo, na faina diária de matar-lhe a fome. Agora, ensaia já os primeiros arremedos de voo. A toda hora, Luíza espia os movimentos desajeitados. Logo o ninho estará vazio.
Noite de verão, as duas janelas do apartamento abertas para trás, as cortinas caem, escorridas, nem sombra de vento perpassa a noite morna.
Luíza custou a dormir. No quarto ao lado, a respiração regular da mãe idosa. O calor sufocava.
Corpo moído, pernas pesadas, tomou um banho de chuveiro, pôs a camisola mais fresca, nada do sono vir. Foi à cozinha beber água, trouxe um copo para a mesa de cabeceira. Ficou longo tempo à janela, olhando a copa do oitizeiro em frente. O parapeito já está cheio de alpiste, cedo as rolinhas virão.
Mais aliviada, deitou-se de novo, ligou o pequeno ventilador de plástico que agora zumbe de leve, ainda se virou algumas vezes, o corpo mole, a sombra dos cílios sobre as olheiras roxas. Quase imperceptíveis, gotículas de suor perlaram o lábio superior, levíssimo buço, e o abismo entre as sobrancelhas grossas. Um fio de suor escorreu no vão entre os seios no momento em que adormecia.
Luíza dorme. Talvez um começo de cólica, essa necessidade de aconchego no baixo ventre. Virada de lado, os braços buscam posição, as mãos em cunha entre as coxas.
Madrugada, os primeiros pios. O corpo da moça arfa na penumbra e ela se mexe de leve ao arrulho da primeira pomba. Do centro do sono, rosa escura que se entreabre, surge o chamado morno, terno, caricioso. Chocalho de sombra, o arrulho encrespa o silêncio, gorjeio, gargarejo, soluço. Quentura de penas, plumagem, suculentos vasos, suculentos tecidos, garganta, túnel, sombria vereda: Luíza.
Toda armada em ninho, tão fêmea, aguarda a resposta. E os arrulhos se repetem, chamando, chamando, langor de saudade na pele, arrepio pelas quebradas da noite.
Da árvore mais próxima, do centro do silêncio, desponta afinal um murmúrio. No início vem tão fraco, tímida bolha rebentando à superfície, depois vem outro, mais outro, ouve-o agora mais nítido, esse som límpido e grave, água de nascente entre manchas de sol, vinho secreto escorrendo da folhagem. Da treva do sono, vê o óvulo que caminha poderoso e todo aberto de encontro ao sêmen que adivinha. Um mínimo vento infla as cortinas, arrepia a penugem da madrugada. As mãos lembram o corpo do pássaro debatendo-se quente, trêmulo e sôfrego. Flecha. O peito macio, gole de vinho rosado, escorre um pouco pela comissura dos lábios.
As mãos em cunha entre as coxas, estremece quando o macho voa para o outro galho. Aconchego, roçar de plumas e bicos, ruflar de asas. Colar de febre na garganta, arrulho, gorjeio, pequenas garras. Delícia de pétalas crescendo, sombra de bambus no açude, chuva no lábio. Sente o impacto nos quadris quando ele monta, o sol explodindo do fundo da noite, rosa morena desabrochada, veludo de ninho desmanchado. No momento em que acorda alagada, o canto dos passarinhos, a claridade entrando crua pela janela aberta.
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