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Ruído e silêncio
O meu primeiro foi de cetim e filó salmão, comprado numa loja que era quase um armarinho. O filó ficou sobrando, os seios eram espalhados, pouco salientes, “depois de lavar se amolda melhor”, a prima disse, e eu, longínqua e secreta, esta nova aquisição era importante. As pernas raspadas com gilete, isso também me fazia um pouco remota, assim como meias de seda alisando as pernas. Mas então elas escorriam, faziam pregas nos tornozelos finos. Tal e qual o sutiã sobrando... E nesse ponto desmoronava-se o mistério. Como uma nota desafinada, isso trazia o sonho por terra, – principalmente no dia em que o irmão de uma amiga avisou: “Olha, conserta tuas meias, estão franzidas”. E estava aí estampada minha incompetência em ser mulher. E seduzir. Canhestra. Canhota. Criança brincando de gente grande.
Então me olhava no espelho e imaginava: uma sobrancelha um pouco mais alta que a outra, um pouco vamp e antipática, mas não importava, ninguém tinha nada a ver com isso, pois então seria outra, seria Ela, uma mulher independente, eficiente, silenciosa. Principalmente isso: silenciosa. Sabedora de mistérios e aventuras, e ninguém imaginaria que tesouros... Não como era na verdade: sonhadora, romântica, um pouco míope, precisando que tomassem conta de mim e, sem querer, falando demais, explicando demais, querendo ser discreta e não conseguindo. Porque estava sempre dando explicações desnecessárias, como se precisasse explicar porque estava ali, diante dos outros, porque existia... A outra mulher, aquela do espelho, não, ela não explicava nada, ela era um lago. Tudo que caísse ali afundaria e logo a superfície fechada, serena, em perfeita tranquilidade. As mãos no colo de açude, a coluna ereta, a nuca de rainha, muito bem, é assim que eu sou agora. É assim que eu quero ser, que eu vou ser um dia. Às vezes, muito ocupada, consultando a agenda, a cabeça do lápis girando no lábio, ou ainda uma caneta pequena e dourada, com um cordão de seda e uma teteia na ponta (isso mesmo, essa palavra antiga, um tanto desfrutável, e que ninguém mais usa: teteia), bem feminina, as unhas longas e vermelhas, o quimono japonês sobre o pijama de seda – isso na intimidade – consultando a agenda, deixe-me ver, talvez aqui haja um espaço... Administrando a vida pública e privada com a mesma graça e eficiência, com a mesma sabedoria e placidez. Em resumo, capaz de ter um amante. E eu nem saberia dizer que isso resumia tudo. Não como agora, assim roendo um pouco as unhas, sem enxergar o número do ônibus que vem, fazendo sinal à última hora, correndo esbaforida e sorrindo ao trocador como quem pede desculpas, cheirando disfarçada embaixo do braço, droga de desodorante, o efeito passa logo, por que será que é tão humilhante cheirar-se?
Chego junto da vitrine e baixo os olhos, para não ser reconhecida. Já dei alguns vexames nesta loja, como no dia me que pus as prateleiras abaixo, experimentando três blusas, três vestidos, uma saia, e acabei angustiada, não conseguindo decidir por nenhuma das roupas. Não era bem aquilo o que eu queria, o que imaginara. Talvez não sejam nem as roupas. Às vezes me acontece isso: desejar alguma coisa com gula, mas quando ela está ao alcance da mão, perder o sentido do desejo, cruzado já por sabe lá que outro, mais remoto. Ou perco-me, no meandro da escolha entre duas cores, dois modelos. E o querer torna-se impossível; é preferível despojar-me de tudo não querer mais nada, fugir para evitar a tortura da escolha e o sentido de inadequação.
Nessa hora, se caio na tentação de procurar transmitir minhas dúvidas às vendedoras, dúvidas intraduzíveis mesmo para mim, não se trata de cores e modelos... elas ainda tentam ajudar-me um pouco, embarcam alguns minutos no meu labirinto, mas logo percebo -lhes a expressão distante e cansada. É porque intuíram parte do meu segredo, que não está ali nas roupas e eu nem sei onde estará. Estará no desejo, no desejar assim intransitivo. É como se confusamente pressentissem alguma coisa que resumem assim: “Essa mulher vai experimentar a loja toda e não vai levar nada.” E têm razão. E quase preciso afastar com as mãos os fios de uma teia de cansaço, explicações e constrangimentos antes de sair a passos rápidos, fugida. Mergulho então na porta com decisão para emergir na rua e respirar aliviada, pura da escolha e do desejo truncado.
E é por isso é que hoje, ao entrar nesta loja, que cheira a incenso, já piso o tapete como quem pede desculpas e confesso, quase sobressaltada, que desejo experimentar o vestido da vitrine... Mas os jovens sentados em almofadões, parecem ocupados com fruir um som tão transcendental, um som de notas frouxas, em meio a fios de incenso que sobem verticais como najas em frente ao encantador de serpentes, que interrompê-los é uma intrusão e uma inconveniência, e quedo-me por um momento, desconfortável de estar ali, de pé, em frente ao grupo sentado. Preciso aproximar-me um pouco mais, e só então repetir que, sim, quero experimentar o vestido da vitrine, aquele com apliques de renda e cetim?
Após uma pequena pausa, uma das moças se levanta. Ela mesma se veste com roupas indianas, a calça jeans esfiapada e, nesse exato momento, na loja cheirando a incenso e música transcendental, pressinto que o vestido fascinante da vitrine é certamente mal acabado na sua confecção artesanal, que jamais lhe perdoarei o decote torto e as aplicações fugindo das costuras. E que jamais conseguirei explicá-lo a essa menina, que já me chama de senhora, enfatizando uma diferença de idade de menos de uma década, e que jamais seria percebida, conservada como sou, se não representasse também um lapso entre duas gerações e um abismo entre maneiras de vestir, de encarar a vida e o amor, em resumo: entre duas culturas. E sinto-me a parte mais fraca.
Quando mostrar à vendedora os defeitos do vestido, ela me dirá superior: “É assim mesmo, é artesanato.”, ficando claro que o defeito é meu, que é chatice minha não gostar dessa costura porca, e isso me acrescentará outros dez anos.
Quinze minutos depois, saio, sem o vestido. A esta loja, sim, sei que jamais poderei voltar. E que, mesmo para olhar as vitrines, terei que me esconder atrás dos manequins.
Por isso é tão bom ir ao oculista, sentada, ereta, com o queixo bem apoiado, o médico puxou o instrumental sobre o meu rosto como se fechasse sobre ele a tampa de uma caixa, ou a máscara de um escafandro, e tudo ficou embaçado de repente. Remoto, como se precisasse atravessar camadas de água e de tempo, vejo na tela a mancha indecisa de luz.
– Está horrível!
E agora ele vai trocando as lentes, calmo e didático. Percebo então que, de certa forma, este é o meu dia, o meu grande dia de fazer escolhas e dizer como eu enxergo as coisas. E ele, não só acreditará, como estará interessado em todos os pormenores, nos detalhes, naquela conversa chatinha que meu marido ou minhas amigas apenas fingem ouvir.
– Assim ou assim?
– Com esta estou enxergando melhor.
– E agora, com esta ou a outra?
– O senhor pode voltar por um momento a anterior? (ah, é o meu dia, o meu dia, a minha hora!)
– Veja bem: com esta ou com esta?
– Não, a outra mesmo é melhor, mais nítida – e agora a vaga dúvida que se insinuara dissolveu-se outra vez.
E ao longo de todo o dia irá perdurar a importância daqueles momentos na sala em penumbra, a cadeira alta, o aparato do instrumental, a luz em jato na tela, e eu um pouco rígida, como se houvesse perigo de quebrar alguma coisa, ou de sentar-me numa posição inadequada, a voz do médico, profunda, no escuro, e em meio à ansiedade e incerteza, a escolha aguda da lente certa. E, após a angústia da quase cegueira, a suprema alegria de ver tudo claro, como se tirassem um véu de sobre as pupilas, revelando-me a escolha correta e um mundo nítido como uma verdade. E afinal sentir-me em paz. Mas logo o médico já tapa aquele olho e abre a vigia no olho esquerdo, de novo o naufrágio da luz submersa, o tatear meio cego, buscando caminho entre as lentes, e as decisões, até que a nitidez apareça de novo como revelação.
– E dos dois conjuntos de linhas – qual se salienta mais: o horizontal ou o vertical?
– O vertical, digo sem sombra de dúvida – e sinto-me triunfante com a certeza.
– E agora, quais as letras estão mais pretinhas – as que estão sobre o campo vermelho ou sobre o verde?
– Sobre o vermelho – está muito nítido.
E agora tudo embaçado de novo, ele já nem se detém, vai passando as lentes, passando. Para numa e eu posso dizer – depois percebi – com um nada de coqueteria na voz:
– Não enxergo nadinha Doutor!
E então ele vai voltando, voltando, eu digo F, V, U, D, até chegar à nitidez absoluta. E ele também está feliz quando afinal diz, outra vez calmo e vitorioso na sua previsão: mas agora (e abre as duas lentes ) está melhor. Sim, sim, está muito melhor!
Sim, quando ele coloca as melhores lentes nos dois olhos lembro-me do primeiro exame que fiz, menina ainda, mas já sabia ler e não precisei do quadro de bichinhos, fui direto para o das letras, achei muito mais distinto isso de letras, e ia dizendo F, V, U, não sei se é um O ou um D, quer dizer, é porque não estou enxergando bem... e o medo que ele pensasse que era porque eu estava confundindo O com D, eu que já estava na segunda cartilha! E isso lançou por um momento a sombra de uma nuvem no radioso dia em que acordei e mamãe me comunicou:
– Hoje é a sua hora no oculista. E eu me preparei para uma coisa muito especial no meu dia de menina. Só não podia avaliar então porque seria tão importante.
Enxergar bem aquilo que se vê. Encantar-se com o silêncio da visão repentina e clara. Tentar exprimi-lo.
E então eu dedicaria muitas horas da minha vida tentando aprendê-lo. Em silêncio.
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