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O espelho

Descemos a ladeira no velho bonde. Saltei, deixando as sandálias no estribo, voltei-me para apanhá-las e ele seguiu, fazendo a curva aos solavancos. Só então percebi que perdera a carteira.

Procurei o caminho de volta entre ruelas estreitas e empoeiradas, casas feias e armarinhos de turcos com mercadorias expostas nas vitrines ou pendentes das portas suspensas.

Encontrei a velha casa, de fachada para a rua, onde o piano antigo nunca deixou de tocar as mesmas escalas e os mesmos prelúdios. Empurrei a porta, que rangeu, pesada, e caminhei na penumbra até a sala. Nos lustres, nas almofadas, nos estofados, tristes ornatos empoeirados davam seu testemunho de uma infância abastada entre opulências perdidas.

A mulher estava sentada de costas para a entrada, o rosto voltado para a janela. Quando me aproximei, vi que bordava. De um lado empilhavam-se os panos riscados e o cesto com as meadas multicores. Do outro, numa pequena bandeja de prata, ia colocando os bordados prontos. Um copo d’água concentrava na borda uma faísca da luz imemorial que entrava pela janela.

Vi que tinha bordado três panos naquele dia. Um dia, uma semana, um mês? Que sentido teria o tempo naquela sala? A poeira dançava no raio de luz.

O piano ainda insistia em suas notas distantes. No andar de cima, talvez. Em outra sala, talvez.

Cheguei à janela e, no quintal, um menino vestido de calças curtas brincava com o gato. Quando estive aqui?, pensei, vislumbrando algum sonho antigo. É preciso aprender matemática, alguém dizia. Para todas as profissões, a matemática é indispensável, alguém dizia. O menino brincava com o gato, o piano martelava suas notas, a mulher bordava em silêncio. A seu lado, só agora eu via o berço, que ela balançava com o pé. A criança dormia, o mosquiteiro pendente do alto.

Andei pelo quintal, havia mangas pelo chão. Mangas, abios e sapotis.

Voltei para junto da mulher. Mostra-me teu rosto, pedi, mostra-me teu rosto. Mas ela escondeu-o ainda mais sob o véu.

Porque só agora eu via que ela tinha um véu no rosto, só agora eu via. Em frente dela, a cômoda, o espelho cor de prata reproduzindo o copo d’água e o ponto de luz na beirada do copo. A poeira brilhava no raio oblíquo.

Os bondes passavam longe, ao longe o mar ressoava. É preciso aprender matemática, alguém dizia, o menino brincava com o gato, a mulher bordava e embalava a criança. No espelho cor de chumbo brincavam o ponto de luz na beira do copo e a poeira no raio de luz. O piano martelava escalas, o menino brincava com o gato, a mulher embalava a criança, pelo chão, abios, sapotis e mangas. (abios, mangas e sapotis ?).

Mangas, abios e sapotis, os bondes passavam, o mar reboava longe, é preciso aprender matemática, a mulher bordava e embalava a criança, o menino brincava com o gato, o ponto de luz brilhava na borda do copo, a poeira...

Quando a mulher parou de bordar, quando, por um momento, parou de bordar e voltou a cabeça, o véu escorregou e a luz da janela iluminou seu rosto, que brilhou, desavisado, no fundo do espelho. E então, no espelho cor de estanho, no espelho cor de espanto, reconheci uma desconhecida amada, vinda, não do passado, como eu julgara, mas do fundo de tempos ainda por vir. E estremeci com força, de alegria funda e fundo susto e prazer.

POSTADO EM 19 DE JULHO
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