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Tempo

De madrugada Clara acordou com um estalido de louça partida. Acendeu o abajur sobressaltada, mas a desordem do quarto estendia-se num silêncio horizontal. Luiz Augusto, ao lado, dormia. Apagou a luz, a noite aprofundou-se, engolida em si mesma. Ouviu ao longe fragor das ondas quebrando na praia; na rua de trás, um ônibus ainda passou na escuridão antes que adormecesse.

No dia seguinte, ao voltar do trabalho, Neuza apareceu-lhe com a conversa de sempre: ao afastar o pote de louça na penteadeira, ele quebrou na sua mão, ou melhor, já devia estar quebrado, Dona Clara, eu só empurrei... Era a terceira vez em dois meses. A princípio irritara-se com o que parecia uma história mal contada, mas agora, lembrando-se da véspera, foi invadida por uma sensação de mal-estar. Então era isso, a porcelana trincava sozinha no meio da noite. Mas da poeira, precisava reclamar. Nunca tinha visto tanto pó nos móveis e nos livros. Talvez Neuza estivesse precisando de óculos, talvez estivesse cansada; o melhor era contratar de novo a faxineira. Tinha dispensado seus serviços desde que o filho mais velho casou e o caçula foi fazer um curso fora. Para um casal, os dois o dia todo no trabalho, os quartos dos fundos quase sem uso, uma empregada bastava. Mas parece que Neuza era melhor na cozinha.

Voltou a faxineira. Clara encarregou-a logo de uma limpeza em regra na biblioteca, para acabar com a poeira e o mofo; nos armários, para acabar com as traças; nas pratas anoitecidas e nos cobres azinhavrados. Respirou aliviada. Mas dali a dias acordou de novo, dessa vez com um zumbido quase imperceptível nos ouvidos. Levantou-se descalça e andou até a porta, procurando acender o corredor sem fazer barulho para não despertar o marido. Foi quando sentiu nos pés a camada de poeira. E na véspera tinha elogiado tanto o chão encerado. Chegou até a sala; aparentemente o zumbido tinha cessado. Olhou as plantas imóveis, cristalizadas em verde, o tempo parado... Que frio, pensou, arrepiada, e voltou depressa para a cama.

No dia seguinte, na hora do café, Neuza regava os vasos. – Dona Clara, venha ver, as samambaias estão cheias de lagartas. Já comeram quase todos os brotos. Se eu não descubro essas desgraçadinhas agora, elas acabavam com as plantas. Cruzes, como é que pode! Nunca vi borboleta aqui dentro. Deve ser mariposa, acho que os ovos aparecem de noite. – E mostrou-lhe a folha coberta de uma postura meticulosa.

Clara sorriu contrafeita e sem querer pensou nos zumbidos, pensou na louça trincada, na poeira, nas traças; na roupa branca encardida, nos metais oxidados. Uma asa de sombra crescia sobre a casa. O pior foi descobrir pó de cupim no móvel da sala. Precisava chamar um serviço especializado.

Na semana seguinte, acordou várias noite com estalos nos móveis e no assoalho. Como um grande navio, o quarto arfava e rangia, desconjuntado ao peso de uma insidiosa e silente tempestade. O vento abrira uma caverna no escuro, de onde soprava parado, forçando cordas, mastros, encaixes; devorava-se e reconstruía-se de si para si, avaro, espumava concentrado entre ameaça e espanto. Tentou acordar o marido, mas ele tinha o sono pesado; além do mais, os assuntos domésticos não lhe interessavam muito. Andava cansado, trabalhando demais. E depois do jantar, quando lia os jornais, era difícil despertar-lhe a atenção para qualquer coisa.

Naquela noite, enquanto tirava a maquilagem, Clara examinou-se demoradamente no espelho do banheiro. Não havia dúvidas de que estava bem. Dentro de um mês faria 45 anos e 27 de casada. Pretendiam reunir alguns casais amigos. Lembrou-se então das conservas. Fizera-as há cerca de dois anos, com o auxílio do filho menor. Parou um pouco pensando naqueles dias tão próximos e já tão distantes. Nesse tempo, os dois ainda moravam com eles, a casa vivia cheia de jovens, entre amigos e namoradas. Pediria a Neuza para pegar os vidros na prateleira alta do armário. Queria abrir um logo, ver se as berinjelas estavam boas para servir de aperitivo. E com saudades percebeu que dentro do azeite dourado o tempo não passara. Aprisionados nas berinjelas imperecíveis, aqueles momentos de sol seriam derramados sobre o prato, junto com o aroma primaveril dos temperos. Deu um longo suspiro.

Nessa noite dormiu bem. O sol entrava pela janela do banheiro quando se olhou de novo no espelho. E percebeu: no correr daquelas oito horas, os anos haviam desabado sobre ela de repente – os cabelos ásperos, os fios brancos proliferando, a pele sem viço, as pálpebras inchadas, a marca funda do travesseiro na face. Quebrara-se o encanto. A asa de sombra que crescia sobre a casa, a tempestade muda que lhe assediava a morada há tantos anos de dias iguais, precipitara-se afinal. Depois de lavar o rosto e se maquilar, talvez ainda dissessem que parecia 10 anos mais moça; talvez reconstruísse o feitiço. Mas naquele instante de espelho e verdade, soube da poeira, dos cupins, soube dos óxidos, ferrugens e enxofres, soube de paredes úmidas e cabelos mofados. Da enorme mariposa de cinza pondo ovos nas rachaduras do tempo, na ferida aberta no flanco dos dias. Pela brecha desse momento quebrado, a poeira fina dos anos, que até então se insinuara lenta e imperceptível, precipitava-se em rajadas; o vento implacável soprava agora sem trégua; sem trégua lagartas devastavam os punhos verdes e tenros de um futuro logo inexistente. Nesse momento Neuza bateu na porta do banheiro:

– Dona Clara, abri a conserva mas as berinjelas azedaram!

No quarto ao lado, Luiz Augusto dormia. Eram as exatas nove horas da manhã de um sábado 23. Era o ano de 1987, era um maio de sol.

 

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Publicado em:

O outro lado da ciência
Organizador: Leopoldo de Meis
Editora Ateneu / 1999 

POSTADO EM 02 DE ABRIL
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