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Cirurgia

Entre as regras de ouro das mulheres do clã – aquelas que nem precisavam ser expressas para serem percebidas, como se viessem ainda reforçadas pelo famoso prefixo: “porque nós, na nossa família...”, estava a de não pintar os cabelos. Pintá-los, além de levemente imoral – coisa de atrizes e mulheres de vida livre – o que era o mesmo que vida suspeita – era uma espécie de hipocrisia, mentira quase. E um desafio aos céus. Que cada um se conformasse com a cor de cabelos que Deus lhe deu, a única que naturalmente combinava com o tom da pele e dos olhos (e não se ousava pôr em discussão essa premissa, justificativa estética meio naturalista, meio científica, do preconceito). E quando começassem a aparecer os primeiros fios brancos, seria lícito arrancá-los um a um com pinça – pintá-los, não. Da mesma forma que omitir um fato não é exatamente a mesma coisa que mentir. Era preciso envelhecer com dignidade e resignação. Ainda que aos trinta e cinco ou quarenta anos. A caridosa exceção ficava com uma tia que, contavam, aos vinte e nove estava com a cabeça inteiramente branca e começou a ser chamada de vovó pelos filhos da vizinha. Essa, desde então, conquistou o direito de tingir os cabelos e o caso era contado como exemplo ilustrativo.

A irmã, que desde cedo pintou os seus de negro para contrastar com os olhos claros e ficar exótica, por cuja beleza e alegria Cristina tinha absoluto fascínio, mas que, por mais de uma vez, cortou os pulsos e tomou barbitúricos em dose excessiva, e sobre cuja vida certamente havia fatos que ela devia ignorar, a irmã arrostava essas e outras leis da família; mas a que preço? Depois, o que ela fazia não contava muito. A mãe sentenciava, ponderada, que ela era um temperamento muito desequilibrado.

Quando mais tarde as operações plásticas passaram a ser coisa corriqueira, a posição da família em relação a elas passou a ser a extensão natural daquelas regras, corolário pressentido com razoável exatidão dos mesmos princípios austeros: seria válido consertar um defeito de nascença, modificar um nariz monstruoso, tirar uma cicatriz; as rugas, não. E a mãe sempre citava o exemplo da amiga que ficou toda repuxada, da prima cujo olho direito ficou diferente do esquerdo. Uma espécie de castigo, o preço pago pela preocupação excessiva com a aparência. Em duas palavras: por serem fúteis e levianas.

Assim, quando resolveu aproveitar a cirurgia necessária para submeter-se também a uma plástica de busto, ficou contentíssima; sentia-se resgatando alguma coisa perdida aos vinte anos, uma identidade e um corpo modificados de chofre na primeira gestação, menina quase. Nunca tivera pernas suficientes para chamar a atenção. Mas tinha, sim, um belo torso, esguio, dividido por um sulco que ia do umbigo à raiz dos seios, de onde eles se abriam redondos e pequenos, mais para botões de flores que para frutos. E então agora, os seios vazios e murchos, pendurados, eles lhe negavam a identidade de mulher, perdida em algum lugar, entre a adolescência e uma velhice prematura.

Mas precisava justificar-se o tempo todo: aproveitaria a internação, o risco operatório, o seguro sobre as despesas do hospital, só pagaria o médico, tinha mesmo que passar por tudo aquilo... E, nas vésperas, começou a ficar ansiosa: alguma coisa podia sair errada, podia morrer de choque anestésico. E ela, que sempre dizia: “Eu queria fazer plástica, mas enfrentar anestesia, o risco cirúrgico, a dor, minha vaidade não vai a tanto” – Cristina percebeu que sua vaidade iria a tanto sim, só que nunca ousara assumi-la. Porque, no código familiar, ela tinha um nome: leviandade. E agora que se resolvera, os subterfúgios que a camuflavam não aliviavam a culpa: temia o castigo dos céus. Como na tragédia grega, aquela era uma espécie de hybris, poderia ser punida por desafiar os deuses, tentar escapar às leis da natureza, ao tempo, ao envelhecimento, ao destino humano.

Imaginava-se anestesiada, com dois médicos debruçados sobre ela, costurando-lhe o seio, abrindo-lhe o ventre, tão adormecida que não perceberia nem participaria de nada, desligada de tudo, espantalho virado e revirado nas mãos de seus dois algozes. E como queria ainda ligar as trompas, e o ginecologista concordara, contanto que não se comentasse o fato diante das freiras do Hospital, uma sensação estranha invadiu-a: podiam então acontecer coisas extraoficiais, ilegais e desnecessárias durante a cirurgia? O que aconteceria durante seu sono? E imaginou a sala de operações, não mais como a sóbria continuação do Anfiteatro de Anatomia, onde Doutores poriam em prática as dissertações de outrora, oferecendo seu saber em prol da vida, segundo uma ética rigorosa, mas como um açougue doméstico, onde a retirada de uma víscera, o corte e a emenda de alguns centímetros de tecido dependeriam de uma decisão de momento, da destreza soberana mas prosaica dos médicos, de sua prática de artesãos posta a serviço de uma vontade leve. (E a lata de lixo cheia de ataduras sangrentas). E percebeu que a plástica contribuía para isso: desnecessária, tinha sido decidida ao sabor de um desejo fútil – ficar mais bonita. O cirurgião fora procurado por essa iniciativa gratuita, contratado como se encomendasse os serviços do cozinheiro ou da modista, antegozando sabores e modelos, e não em resposta a esse sucesso do destino, esse inevitável desígnio celeste – a doença. E ao determinar, em pleno exercício de sua liberdade, que cortassem e modelassem seu corpo, interferissem no envelhecimento, conferira aos médicos um poder sobre-humano, desafiara uma lei divina. E essa onipotência seria praticada de forma doméstica e leviana, enquanto os dois trocassem piadas obscenas ou comentassem o último jogo de futebol. Enquanto ela dormia e os pobres morriam de fome. Pagaria honorários altíssimos para ficar com um busto adolescente, num sacrilégio contra a natureza, numa afronta a Deus e a seu próximo. E, de um golpe, transformava o respeito religioso e severo que conferimos à sala de cirurgia, ao aparato do instrumental e à sua equipe de vestais e sacerdotes, na intimidade confiada, condescendente e familiar que nos inspira um salão de beleza, onde a manicura gorda, o avental sujo preso por um alfinete, a boca cheia do doce que acabou de comprar, dirige uma frase rasteira e uma gargalhada ao cabeleireiro de dedos arroxeados de tintura; e onde mulheres louríssimas de unhas longas e calças justas vão gastar seu tempo e seu dinheiro impunemente. Por um gesto seu, conspurcara o Templo, dessacralizara a Medicina e pactuava com a decadência dos costumes e a derrocada do Ocidente. Seria algum dia perdoada? E onde ficava o quadro, visto no consultório do primeiro médico e jamais esquecido, onde um homem de branco abraçava protetoramente uma mulher nua, afastando com o outro braço o esqueleto da Morte que viera buscá-la? E, em sua imaginação, vencendo sempre? E onde os antigos doutores da família, sempre velhos e que não erravam nunca?

Mas estava feliz. E quando falava com a irmã, que agora tinha uma companheira para transgredir as leis do clã, ela não parava de elogiar-lhe a iniciativa:

– Você vai ver, até a sua vida íntima vai ficar melhor.

 

Acordou vomitando as tripas. De barriga para cima, não podia se virar, cheia de bandagens, curativos, faixas. Nunca se sentira tão mal, queria morrer. E choramingava: – Se eu soubesse que era assim, não tinha feito, juro que não tinha feito!

Mas no dia seguinte, passada a náusea, quando tiraram as faixas para o curativo, esqueceu depressa o arrependimento. 

Afinal, tudo tinha dado certo. Não tinha sido castigada. Estava mais bonita e mais feliz. E quase sempre que ia ao banheiro, abria o vestido e se contemplava, se namorava. Nunca pensara que isso tivesse tanta importância, que fosse assim vaidosa, que o corpo de antes fosse a imagem e a concretização mesmas de uma depressão crônica e inconsciente. O cabelo, esse pintava-o há muito tempo. Era vaidosa e fútil, sim, lutaria contra o avanço maldoso dos anos, sim, com as armas de seu tempo. Como era bom, para uma mulher fútil, sentir que cada coisa em seu corpo estava ocupando o lugar certo!

 

Uma semana depois estava em casa, repetindo sempre o mesmo ritual: de cada vez que chegava uma mulher, levava-a ao quarto, a pedido, para mostrar o busto recém comprado.

A naturalidade era absoluta. Assim como os seios de uma mulher que amamenta tornam-se objetos ligados à nutrição e transitoriamente desvinculados do desejo, quase tão domesticados quanto as chupetas, mamadeiras e fraldas dispersas pela casa, diferenciados apenas pelo fascínio remoto que ainda exercem, misto de medo e respeito pela função sagrada, havia algo de transitório e inocente nos novos seios. Só que, nestes, era algo de artificial, de fabricado e inócuo. Eram seios modelados de estátua, seios plásticos de boneca, mercadoria de bazar; era indiferente que fossem exibidos. Não haviam brotado aos poucos de um corpo de menina, à sombra de terrores e desejos, em meio a mistérios, tabus e pensamentos proibidos. Seios arcaicos de fêmea, sinais exteriores da menstruação, orgulho e estigma, chegados para tirar a paz, inaugurar o sexo e o amor, emblemas de uma fecundidade por completar-se, venerada e temida. Não tinham história nem função, passado nem futuro – meros adornos. Só aos poucos, à medida que os fosse incorporando à sua vida, apossando-se deles como seus, substitutos dos outros, desaparecidos, que retomassem aos poucos as funções de sedução e prazer, reescrevendo uma história entrelaçada com a prática do amor e a condição de fêmea, só então passaria a ocultá-los de novo; então seriam realmente seios, reassimilados ao corpo, reintegrados a uma intimidade momentaneamente perdida graças aos pontos, aos tampões de gaze, ao cheiro de desinfetante e hospital. Voltariam a ser íntimos, sim. Jamais tornariam a ser sagrados.

 

– Você fez, você fez? Deixa eu ver, deixa eu ver!

Era como lhe perguntava, excitadíssima, entre gritinhos e exclamações de prazer, a senhora que lhe fazia limpeza de pele, e que, com quase sessenta anos, tinha o rosto todo repuxado de inúmeras plásticas:

E depois, aplacada a curiosidade, emendava, sentenciosa:

– É isso mesmo, a mulher tem que se cuidar. Quem não se enfeita, a si se enjeita; te digo, uma mulher não pode deixar cair. Ainda mais se tem marido moço e com dinheiro no bolso. Está assim de piranhas dando em cima deles. E quando for começando a pendurar, tem que ir logo telefonando para o médico, marcando o hospital para fazer mais uma. Te digo, minha filha, até os homens estão fazendo!

POSTADO EM 19 DE JULHO
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