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Paris
A mulher olhou o interior da loja, procurando fixá-lo. A escada, com a bela grade art nouveau, e, em todos os andares, o esqueleto de ferro com parafusos suportando o teto, estrutura semelhante à das estações de trem da Belle Époque. Mas, ali, num gracioso verde-musgo. No último andar, a enorme clarabóia abobadada, os painéis de vidro leitoso encaixilhados nas mesmas molduras de ferro. E ao redor, nas paredes, pinturas de pavões. Ao fundo, o bar.
Passou por várias prateleiras com roupas de cama e banho – Christian Dior, estamparia de margaridas, um luxo de amarelo sobre branco – e chegou ao bar. Um portãozinho de ferro separava-o do restaurante, onde, sobre a grade rendilhada, destacava-se em metal dourado a silhueta de mais dois pavões. Um café, um croissant, uma água mineral e, pela janela, a paisagem sobre o Sena – as casas alinhadas à margem esquerda e, ao longe, a Île de la Cité, a pontinha da Sainte-Chapelle emergindo entre os telhados de ardósia.
Foi nesse momento, exatamente nesse momento, como num líquido em superfusão, os cristais se precipitando de repente, que dentro dela aconteceu.
Já estivera na Europa algumas vezes, belíssimos passeios, um carro alugado por um mês, nunca mais que seis ou sete dias em Paris. Viagens que nunca merecera. Que fazia, entre encantada e aflita, anotando apressadamente as despesas num caderno, o dinheiro e o passaporte bem protegidos num saquinho junto ao corpo, o orçamento certo. O marido declarava:
– Não viemos à Europa para comprar.
E ela repetia, na volta:
– Não compramos nada, só lembrancinhas.
Comprar seria caro, fútil, escandaloso mesmo, imoral quase. Uma viagem cultural – era tudo o que se podiam permitir, ética e financeiramente – e para isso estava decretado que qualquer sacrifício ou desconforto valeria a pena.
Estudavam seriamente os guias, selecionavam roteiros, economizavam na comida e no hotel – “afinal, é só para dormir” – compravam cartões, posters, uma ou outra lembrança para os filhos.
Às vezes, olhava gulosamente uma vitrine de coisas bonitas, um colar de âmbar, um broche antigo, e tudo era acima das suas posses. Seria mesmo? Nem verificava. Aquela era uma viagem séria. Intelectual de óculos e calças jeans, entre sonhos inconfessáveis de princesa turca ou estrela de cinema (linda, fútil, burra, mimada), era proibido comprar. Não era querer e não poder comprar. Era querer e não poder querer comprar (mimada, burra, fútil, feiosinha). Passava ao longo das vitrines opressa e enviesada – era proibido ter, era proibido cobiçar – e cobiçava. E na fresta desse olhar oblíquo e invejoso, por entre as bordas da pupila em fenda, insinuava-se a mãozinha ávida com que roubava Paris. E porque roubava, mesmo o pouco que comprava com seu dinheiro, com o dinheiro ganho e economizado ao longo de dois ou três anos de trabalho, era imerecido, cheio de culpa, dúvidas e arrependimentos. E porque tudo isso a fazia ansiosa, entre os prazeres da viagem, por vezes ficava quase infeliz, e mais uma culpa se somava às outras: como estar infeliz viajando, não estavam na Europa? Não estavam gastando tanto para se divertir, quando outros não tinham nem para comer? A viagem tinha que ser boa, um sucesso, uma lua-de-mel, era o mínimo que devia ao mundo. Ah, como era difícil uma lua-de-mel por obrigação! E assim, em meio aos deslumbramentos e prazeres, a viagem era essa fonte de culpa e desconforto, a Europa era demais para ela, Paris, então, era, a cada momento, agudamente imerecida, porque maravilhosa além da sua capacidade de aproveitar qualquer coisa em uma semana. Além disso, a inadequação de ser estrangeira, de não dominar a língua, não falar bem ao telefone, não conhecer as ruas, não entender o chuveiro do hotel nem as pias dos toaletes públicos, nem, nem, nem... Outra vez criança e incompetente. Que alívio voltar para o Brasil e andar, livre e adulta, pelas calçadas, sem mapa nem medo de se perder, sem prazo marcado nem obrigação de ser feliz e grata ao destino!
Agora, às vésperas do primeiro neto, acontecera um passeio diferente. Não fora uma viagem com roteiro extenso e planejado. Iriam apenas visitar o filho que, no momento, morava em Paris, passariam um mês com ele. Paris era uma circunstância acessória, a embalagem de luxo acondicionando o verdadeiro presente. Já conheciam o Louvre, a torre Eiffel, o museu dos impressionistas. Assim, batiam pernas pelas ruas, olhavam o comércio à volta, tomavam o metrô para um ou outro passeio. Talvez voltassem, sim, a algum museu, mas sem pressa ou programações cansativas, para uma exposição temporária, ou para rever alguma coisa que deixara saudades. E, entre um restaurante e outro, uma confeitaria, um croissant, uma vitrine, iam vivendo a vida, a vida de todos os dias – em Paris. Exploravam o quarteirão, conheciam a farmácia e a boulangerie do caminho de volta para casa, suas horas de abrir e fechar e abrir de novo. Havia tempo para desperdiçar, tempo para transferir projetos e desejos, tempo de querer e desistir e querer de novo, tempo de errar e corrigir o erro, tempo de comprar pão e ler jornais.
Então, naquele momento, na loja, diante do Sena, dos telhados, da ponta da Sainte-Chapelle, naquele momento, enquanto mastigava, distraída, Paris precipitou-se dentro dela, naquele instante se apossou da cidade, só então Paris foi sua, foi sua de fato e de direito. A primavera começava. Havia tulipas em todos os canteiros, havia amores perfeitos e miosótis amontoados no Rond Point do Champs-Elysées. E Paris desabrochou, merecida, por dentro e por fora, só naquele momento, depois de tantos anos, pisou de fato em Paris e acolheu-a inteira dentro de si, íntima como, num peso de papéis, essas miniaturas de cidades sob um céu redondo, de onde a neve cai devagar.
Não queria colares de âmbar, não baixava mais os olhos diante das jóias proibidas nas vitrines da Place Vendôme. Tal como, afinal, nunca a tinham perturbado, antes, as vitrines de joalherias no Rio de Janeiro.
Desceu para o quinto andar – seção de bebês –, olhou uma coisa e outra, foi separando devagar e com cuidado, como era seu jeito demorado de comprar. Um macacão de malha para três meses, mangas compridas, ainda vai estar frio. Tamanho de seis meses, curto, será início de verão. Tamanho de um ano, um casaco com capuz. Não muito grosso, forrado de flanela, bom para o nosso inverno, outro macacão curto... Quatro roupinhas lindas. Numa boa loja. Não a melhor, não a Baby Dior, do Champs-Elysées. Mas, também não a lojinha mais barata da esquina. Um bom presente de avó satisfeita.
Foi descendo as escadas rolantes, olhando tudo, curiosa e tranqüila, sem desejos ou proibições.
Saiu em frente ao Sena e foi andando, andando, entre as árvores de copas verticais, que começavam a se pincelar de verde. Até que, levando Paris dentro de si, plena de Paris por dentro, as ruas, as árvores e casas se fecharam em torno dela, que sumiu à distância, engolida pela paisagem da cidade naquele fim de luz.
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Publicado em:
O outro lado da ciência vol. II
Organizador: Leopoldo de Meis
Editora Vieira & Lent / 2006
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