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A Máquina
O espectrômetro de ressonância nuclear magnética estava há quinze anos no Instituto. Dora, a pesquisadora que operava o equipamento, era muito bem treinada. Embora houvesse aparelhos mais modernos e sofisticados, orgulhava-se de que poucos forneciam espectros tão precisos e limpos. Estava acostumada, desde o seu doutoramento nos Estados Unidos, quando trabalhara com modelo equivalente, a esperar o tempo necessário ao aquecimento dos circuitos e a realizar certas operações por partes, fazendo os cálculos indispensáveis para localizar a posição de cada pico ou sinal. Por certo, os aparelhos mais novos já forneciam automaticamente os gráficos com muito menos trabalho; mas estes não eram em nada superiores aos seus.
Logo que veio de fora, Dora tinha planos de abrir uma linha de pesquisa própria, investigando problemas que a interessavam. Depois, e porque aquele era um dos únicos espectrômetros disponíveis no país, passou a ser cada vez mais solicitada por pesquisadores que queriam utilizar a técnica. Gostava de colaborar. Alguns eram cientistas de nome... E já que muito tempo era gasto na operação do equipamento, aos poucos passou a só trabalhar em co-autoria, nos mais diferentes projetos. Cada vez mais, o método exigia todos os seus esforços. Era uma perfeccionista: meticulosa, limpa, rápida, precisa. E orgulhava-se disso.
Nos últimos meses, porém, as variações de corrente e a sobrecarga das instalações elétricas obrigavam-na a só ligar o espectrômetro depois das seis ou sete horas da noite, permanecendo no Instituto até às dez. Também aos sábados, conseguia excelentes gráficos. Nessas horas tranqüilas, sentia-se tão integrada ao aparelho que o percebia como uma continuação do seu corpo, pincel na mão do pintor, volante na mão do piloto, cavalo e cavaleiro. E houve um sábado de especial sintonia em que sentiu seu sangue circulando através das paredes de aço, o coração batendo no mesmo ritmo dos pulsos magnéticos, os nervos conduzindo os impulsos que iam modulando as freqüências. Nesse dia, os cálculos saíram-lhe mais rápidos, a resolução dos picos foi excelente e os espectros, elogiados com entusiasmo pelos colaboradores.
Naquele mês teve a primeira dor no peito. Correu ao médico, o eletrocardiograma demonstrou uma pequena alteração. O cardiologista, entretanto, não deu maior importância. Receitou-lhe um vasodilatador e um tranqüilizante. E diante do seu medo:
– Não é nada grave, esteja tranqüila, pode trabalhar à vontade, levar vida normal. Apenas evite preocupações. Sim, principalmente isso: não se aborreça.
Dois meses depois, Dora teve outra crise e pediu licença para tratamento de saúde. Deixou o aparelho aos cuidados de sua assistente, com a recomendação de chamar o técnico e fazer uma revisão. Vinha notando uma alteração persistente nos espectros.
À licença seguiu-se um congresso fora e, quando voltou, foi entusiasmada, resolvida a montar um projeto solicitando recursos para a substituição do espectrômetro. Segundo o engenheiro, aquele ainda poderia durar algum tempo, mas jamais forneceria os mesmos traçados de antes; tinha um defeito grave no amplificador.
Naquela tarde, antes do acender das luzes, enquanto acompanhava a linha do crepúsculo pela janela, Dora olhava o vulto de aço com um sorriso triste. Passou a mão de leve pelas superfícies frias, tateou os cantos arredondados, o registrador fiel. A lembrança do noivado rompido passou-lhe pela memória. Foi pouco depois do estágio nos Estados Unidos. Fernando ia para a Inglaterra. Ela acabava de assumir seu posto no Instituto, o aparelho tinha chegado há pouco; concordaram que era melhor ficar. Meses depois, ele escreveu rompendo. E voltou, ao cabo de ano e meio, casado com uma bolsista que conheceu em Londres. Depois, aos fragmentos, outras ligações. Foi algumas vezes a parceira temporária de homens que fugiam da rotina e da idade. Em certa ocasião, chegou a pensar que refaria a vida; mas o fato é que nunca mais teve um companheiro todo seu, uma relação continuada, um presente que se projetasse num plano de futuro inteiramente seu.
O projeto para compra do novo equipamento recebeu parecer técnico favorável, mas foi vetado em outros níveis por falta de verba. Eram tempos difíceis. Dora assustava-se. Tinha que chamar o engenheiro a cada dois meses; o espectrômetro deteriorava-se a olhos vistos. A julgar pela rapidez com que perdia a precisão, estava com os dias contados. Em breve teria que ser substituído.
Por essa ocasião, teve um convite para passar um ano fora. Uma excelente oportunidade, não só para sua carreira, como para fazer exames de saúde. A dor no peito afligia-a seguidamente e, com tantos problemas, era impossível não se preocupar. Estava já de malas prontas quando sobreveio o infarto.
No dia seguinte, às sete horas da noite, a assistente estava trabalhando em frente ao espectrômetro, quando percebeu uma grave alteração no traçado. Uma linha reta correu pelo papel de gráfico antes de se extinguir. No silêncio imóvel que se seguiu, teve a certeza de que seria definitivo.
Minutos depois o telefone tocou. Era do Hospital.
Nota: Gostaria de agradecer ao professor Luiz R. Travassos pela revisão de pormenores técnicos, realizada há muitos anos atrás.
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Publicado em:
O outro lado da ciência vol. II
Organizador: Leopoldo de Meis
Editora Vieira & Lent / 2006
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